Características do conservadorismo russo e em que ele se difere do clássico conservadorismo britânic
Para Vladímir Putin, que nos últimos tempos tem falado com maior insistência na tradição, o conservadorismo não é um instrumento para congelar o que quer que seja –pelo contrário, a revolução conservadora que vem de cima e que se apoia na demanda conservadora que chega de baixo, consegue produzir grandes mudanças na estrutura sócio-política da Rússia, eliminar aquilo que não está em conformidade com o seu código nacional e que atrapalha o desenvolvimento do país.

Em seu quarto mandato, o presidente russo Vladimir Putin mantém firme uma “escalada” ou “viragem conservadora”. Há um ano completavam-se 100 anos da Revolução de 1917, não há quem discorde do fato de que o conservadorismo é uma característica marcante da Rússia dos dias de hoje. Gozando de legitimidade entre a população, o conservadorismo está elevado a ideologia não-oficial do governo Putin, o que traz implicações seríssimas tanto para a política interna quanto externa do país. A “volta ao conservadorismo” pode ser vista como o miolo de um conjunto de dispositivos políticos usados pelo Kremlin para enfrentar seus problemas internos, em especial a luta contra uma oposição liberal e a necessária legitimidade do regime. Entretanto, o conservadorismo, enquanto pilar político, lança tentáculos mais poderosos, terminando por fornecer armamento ideológico para estratégias mais amplas e de longo prazo: enquanto na política interna contribui para a consolidação do federalismo russo, reforçando vertentes nacionalistas dentro e fora do país, na política externa expõe a Rússia como forte aliada para conservadores europeus, asiáticos.
Pode-se dizer que o “conservadorismo social” se tornou a ideologia semi-oficial do partido no poder, o “Rússia Unida”, pois, muito embora tenha praticamente desaparecido dos documentos oficiais do partido, recebe aprovação da própria boca do Presidente. Em uma entrevista de 2013. Vladimir Putin descreveu-se nos seguintes termos:
Eu acho que é perfeitamente possível dizer que eu sou um pragmático com uma inclinação conservadora. […] O conservadorismo certamente não significa estagnação. Conservadorismo significa defesa de valores tradicionais, mas com um elemento adicional necessário com vista ao desenvolvimento. Parece-me que esta é uma coisa absolutamente essencial. E, como regra geral, a situação no mundo, em quase todos os países, é tal que os conservadores detêm os recursos, os fundos e o potencial de crescimento econômico. Então os revolucionários chegam e dividem tudo isso de uma maneira ou de outra. “Revolucionários” é algo relativo, claro. Podem simplesmente ser representantes de movimentos de esquerda, partidos de esquerda ou podem ser radicais genuínos. Em seguida, dividem as coisas e todos estão satisfeitos. O período de desilusão começa quando parece que tudo está usado ou estragado e se precisa começar a ganhar as coisas novamente. As pessoas o percebem e novamente chamam os conservadores. Mais uma vez eles colocam seu ombro na roda, começam a trabalhar, começam a construir as coisas de novo e então dizem a eles “Ok, isso é o suficiente, você ajudou muito. Agora é hora de dividir”. Este é o círculo constante dentro da política.
Repare-se que Putin elenca o conservadorismo como plataforma moral e diretriz para o curso da política, defendendo o desenvolvimento econômico com ênfase na “tradição russa” e em valores conservadores. Além disso, ele define o conservadorismo em contraposição ao radicalismo, em especial o de esquerda, legitimando sua posição com a velha máxima de que antes de gastar é preciso trabalhar e ganhar. Trata-se de uma weltanschauung, uma cosmovisão ou visão de mundo. Noutro contexto, o líder russo disse o seguinte:
No mundo, há cada vez mais pessoas defendendo a nossa posição sobre a defesa dos valores tradicionais. Naturalmente que esta é uma posição conservadora. Mas, nas palavras do filósofo Berdyaev, o sentido do conservadorismo não é o de impedir o movimento para a frente e para cima, mas de impedir o movimento para trás e para baixo, para a escuridão caótica, para o retorno ao estado primitivo.
O sujeito citado por Putin, Nikolai Berdyaev (1874 – 1948) foi um religioso e filósofo russo que no início do século XX era adepto do “cristianismo ortodoxo”, sendo autor de uma obra que remete a termos como “realismo místico”, defesa da liberdade pessoal, desenvolvimento espiritual, ética cristã, e caminhos “informados pela razão e guiados pela fé”. Tendo vivido a revolução de 1917, o filósofo se posicionou em algo que considerava nem a favor do bolchevismo, nem do czarismo, defendendo o “cristianismo existencialista”. Atualmente, Berdyaev é reconhecido por muitos do país como “o líder espiritual da nova era Putin”.
A Rússia tem como religião oficial a Igreja Ortodoxa Russa, também chamada de Patriarcado de Moscou. Em 1993 a Igreja Ortodoxa Russa canonizou São Lourenço de Chernigov, adepto de São Teodósio (para quem “nunca devemos louvar a religião de qualquer outra pessoa, e em nenhum caso devemos nos unir com os católicos ou sair da Fé Ortodoxa”), e autor de profecias muito lembradas durante o conflito da Ucrânia, em virtude de defenderem que a palavra que “designa nossa terra nativa e nossas pessoas, é Rus’ e russo” e que “é absolutamente necessário saber, lembre-se, e não se esqueça de que aconteceu o Batismo da Rus'(Rússia), e não o batismo da Ucrânia. Kiev é uma segunda Jerusalém e a mãe das cidades russas. A Rus’ de Kiev foi em conjunto com grande Rússia. Kiev sem a grande Rússia e separada da Rússia é completamente impensável”. A relação entre Igreja e Forças Armadas Russas é tão próxima que é comum a presença de missionários nos fronts (levando a “necessária paz espiritual”), batizando soldados e mesmo as armas a serem por eles usadas nos combates. Não é de se surpreender, já que o Exército russo introduziu uma inovadora Capela Ortodoxa Aero-móvel com padres paraquedistas. Acerca da fé dos russos, recentemente foi divulgado um estudo intitulado Russians Return to Religion, but Not to Church (Ver aqui) onde se compara dados dos anos de 1991, 1998 e 2008 coletados pela International Social Survey Programme. O relatório mostra que entre 1991 e 2008 a porcentagem de adultos russos que se identificam como cristãos ortodoxos aumentou de 31% para 72%. No mesmo período, a população russa que não se identifica com nenhuma religião caiu de 61% para 18%. Ainda de acordo com o relatório há um pequeno aumento no número de pessoas que se identificam com outras religiões, como o Islamismo, o Catolicismo e o Protestantismo.
Os ideólogos do “conservadorismo russo moderno” afirmam que a fórmula “Autocracia, Ortodoxia e Nacionalidade” expressa a essência da tradição russa, e que nesta fórmula a autocracia “não é apenas o poder do monarca, mas também o governo independente, a independência do país e do seu governante”.
O WCIOM (Centro de Pesquisa da Opinião Pública da Rússia) publicou em 2014 um relatório chamado “A nebulosa natureza do conservadorismo russo”, onde observa que, em resposta à pergunta “O que vem à sua cabeça quando você ouve a palavra ‘conservador’ ou ‘pessoa conservadora’?”, 38% dos entrevistados citaram características positivas, 32% negativas e 31% ficaram indecisos. Questionados sobre se descrever alguém como conservador era algo positivo ou negativo, 43% responderam que era positivo e 37% disseram que era negativo, com 21% de indecisos. Não podemos notar, portanto, uma clara adoção da ideologia conservadora, e sim uma clara cisão ideológica da sociedade russa. Há que se notar, entretanto, que o Centro de Pesquisa notou uma dinâmica interessante na atitude para com o conservadorismo entre novembro de 2003 e fevereiro de 2014 (auge da crise na Ucrânia): o número de pessoas que acreditavam que “o conservadorismo é o que permite a preservação dos costumes e tradições de um país, a estrutura social existente e o progresso suave e ininterrupto” passou de 44% para 56%. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que acreditam que o conservadorismo “não permite que a sociedade avance” também cresceu, de 27% para 31%.
A tendência à aguda polarização também é reveladora com respeito às respostas à pergunta “Você simpatiza pessoalmente com as ideias de conservadorismo ou não?”. Em 2003, 37% responderam “definitivamente Sim” ou “provavelmente Sim”, enquanto 33% responderam “provavelmente não” ou “definitivamente não” e 30% estavam indecisos. Já em 2014, 48% responderam “sim”, 35% responderam não, e apenas 17% permaneceram indecisos. Os dados mostram que, apesar de um evidente aumento de simpatia por ideias conservadoras, a atitude em relação à “marca” ideológica “conservadora” permanece extremamente ambivalente. Isto, na análise de Leonid Polyakov, significa que “para que o conservadorismo se torne a ideologia nacional que realmente determina as prioridades da política interna e a direção da política externa, o Kremlin terá de tornar explícito o conteúdo latente que está contido nessa meta-narrativa”.
Em um discurso que tinha como tema “A maioria moral contra a minoria ativa”, o cientista político russo Serguêi Markov, que foi membro de 2009 a 2012 da Comissão Presidencial da Federação Russa para combater as tentativas de falsificar a história em detrimento dos interesses da Rússia, observou que “o conservadorismo russo difere do clássico britânico pelo fato de o britânico procurar o seu apoio na aristocracia, enquanto o russo o procura no povo”.
Em síntese, portanto, de acordo com a análise de Leonid Polyakov, “o conservadorismo, como identidade nacional expressa através de uma ideologia, torna-se um meio de apresentar a própria nação como ‘soberana’, como definida por Jean-Jacques Rousseau em seu tratado O Contrato Social”, e nesta chave analítica, “não importa quão estranho ou inaceitável pareça a escolha russa de seu modo de vida, padrões morais ou sistema político se julgado pelos cânones das democracias liberais ocidentais ou pelos gostos da minoria liberal russa, este é seu direito soberano” .
O novo modelo de integração do pluralismo cultural da sociedade russa no quadro do federalismo do Estado Russo é outro aspecto da política interna de Putin que torna mais explícito o perigoso potencial estratégico da “viragem conservadora”. A mistura étnica e religiosa da Rússia, apenas comparável à da Índia, é simultaneamente um poderoso recurso de desenvolvimento e fonte de conflitos. Não por acaso ocorreu a criação, em março de 2015, da Agência Federal para os Assuntos da Nacionalidade, visando a prevenção e manejo de conflitos étnicos ou religiosos nas regiões da Rússia. Aqui, as ideias de Vladimir Putin sobre a Rússia como uma “civilização única”, apresentada em janeiro de 2012 durante a campanha eleitoral, mostram suas intenções. Tratando do tema, Putin afirmou que “a nação russa se define como uma civilização multiétnica mantida unida por um núcleo cultural russo”, buscando forjar uma “terceira via” entre o “projeto multicultural ocidental” que, na opinião de Putin, falhou, e o projeto alternativo de “Estado-nação” construído “unicamente na identidade étnica”.
O federalismo russo foi herdado dos bolcheviques e pode, numa interpretação conservadora, receber um novo ímpeto. Na URSS formulou-se o princípio segundo o qual todas as repúblicas (repúblicas federais e repúblicas autônomas dentro da RSFSR) eram “nacionais em forma e socialistas em conteúdo”. Os ideólogos do Partido acreditavam que tudo o que era nacional no futuro daria lugar ao surgimento de uma “nova comunidade histórica”, um povo soviético mundial e sem nacionalidade. Foi justamente a ascensão dos movimentos nacionalistas induzidos pela Perestroika um dos fatores que destruíram a URSS por dentro, portanto, em teoria, Putin não deve ver com bons olhos os movimentos que ajudaram no colapso soviético (que ele chama de “maior catástrofe geopolítica mundial”).
Outro aspecto da “viragem conservadora” da Rússia aparece na mudança clara nas prioridades de política externa do Ocidente para o Leste e para a região da Ásia-Pacífico. O “pivô para a Ásia” promete mudanças profundas no discurso conservador russo. A fórmula conservadora de Putin (desenvolvimento conforme às tradições nacionais) é uma combinação quase perfeita tanto para as modernizações asiáticas que já ocorreram (no Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura) quanto para as esperanças e intenções dos próximos projetos de modernização no Oriente e Sudeste Asiático. Mais importante ainda, esta fórmula refletiria perfeitamente a experiência da República Popular da China, principal parceiro estratégico da Rússia de hoje.