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O seriado Trotsky.

Para os 100 anos da Revolução Russa, completados em 2017, foi produzido na Rússia o seriado “Trotsky”, que estreou no Brasil neste ano de 2019 pela NetFlix. Os diretores do seriado são Alexandr Kott e Konstantin Stanskii

Algumas criticas recebidas pelo seriado no Brasil dão conta de que ele apresenta Trotsky como “oportunista”, “machista” (!), “arrogante” e “perverso”. A parte da verdade disso ou não, e da relevância disso para a história, o problema com este seriado é justamente que ele apresenta os fatos como decorrências das características psicológicas dos personagens e não da política.

Se quisermos tratar daquilo que no seriado não corresponde com a realidade histórica, então tais incongruências serão muitas. Um dos principais problemas é que quase tudo é explicado através da “psicologização” dos personagens. Suas discussões políticas são completamente retiradas da narrativa destes personagens, e em lugar disso como única explicação aparecem traços psicológicos dos personagens. Por exemplo, Trotsky é movido apenas por uma ambição pelo poder a qual o controla totalmente, seu posicionamento político e estratégico não é tratado no seriado.

É visível que o seriado está de acordo com algumas linhas em relação à Revolução, as quais partem da política historiográfica oficial da Rússia atualmente. Estas linhas estão baseadas na criminalização da Revolução que aqui é apresentada como um resultado da união de ambições humanas (sede de poder, egoísmo, luxuria e etc.) e de astucias de inimigos externos os quais apoiaram essas ambições, usaram suas ideias para a destruição do Estado russo, seu inimigo na I Guerra. O notório tema do suposto financiamento alemão à Revolução é evidentemente o núcleo deste enredo simplório.

Em cem anos, os mais ativos defensores desta versão não puderam encontrar uma única prova para sua tese. Historiadores sérios provaram que a maioria das acusações foram posteriormente falsificadas. Essa é a principal coisa que faz com que esta série, por definição, esteja longe da verdade histórica. De resto, uma série de erros estúpidos associados aos itens do tempo em questão como erros em certos uniformes. "Trotsky" peca também com encontros que não ocorreram. No seriado ele encontra-se com Stolypin e com Kerensky, coisa que na realidade nunca ocorreu. Além disso, o movimento revolucionário parece completamente ridículo. Muito provavelmente, os autores de "Trotsky" foram inspirados pelo movimento de protesto moderno, ao invés de materiais históricos ou, pelo menos, crônicas. Segundo os autores, a Revolução é controlada por algum tipo de personalidade obscura e as causas do descontentamento popular e o desenvolvimento do movimento revolucionário não são mencionados.

Em “Trotsky”, quase todos os personagens são caricaturados. Lenin, interpretado por Stychkin é um solitário obcecado. Quanto a Trotsky, um dos produtores da série disse que ele deveria ser um "astro do rock" da revolução. E foi assim mesmo que o recriaram.

Trotsky é descrito como uma pessoa que sacrificou não apenas o país, mas também a família, o que é completamente falso. É difícil dizer que condiz com a realidade neste seriado, talvez seja a cena em que Trotsky levanta o ataque dos soldados de seu trem e, assim, salva a situação. Este é um fato real, foi em agosto de 1918 perto de Sviyazhsk. Isso é descrito nos trabalhos de Larisa Reisner. A propósito, Larisa Reisner é retratada como amante de Trotsky com um tipo de decadência incompreensível. Na verdade, ela também era revolucionária. As mulheres na série de, de uma forma geral, são retratadas de forma bastante peculiar. Em relação à Natalia Sedova, por exemplo, tudo está distorcido. Ela é mostrada como uma representante da vida Boêmia, não interessada na Revolução, que simplesmente se apaixonou por Trotsky e se tornou sua esposa. Na verdade, ela foi uma revolucionária antes de se encontrar com Trotsky. Ela era um membro do grupo Plekhanov. Ela não era simplesmente a esposa de Trotsky, ela estava ativamente envolvida nas atividades do governo, participava do movimento trotskista, como, na verdade, toda a família Trotsky, exceto Sergei. Mesmo após o assassinato de Trotsky, Sedova continuou a desempenhar um papel de destaque na Quarta Internacional. Sua imagem na série, claro, não tem nada a ver com a realidade. Natalya Sedova é uma pessoa que esteve imersa na vida política, na luta e não apenas apoiava seu marido. O comportamento de Frida Kahlo também é bastante fictício. Em primeiro lugar, também não há evidência de seu caso sexual com Trotsky, embora em princípio isso seja possível. Mas neste filme ela tem um caso com o assassino de Trotsky, "Frank Jackson" ao mesmo tempo. A figura de Jackson também é muito estranha. Naturalmente, não havia e não poderia ter nenhum caso com Frida. E ele se aproximou de Trotsky, não como jornalista escrevendo sobre Trotsky e fã de Stalin. Pelo contrário, ele se descreveu como um trotskista ardente.

"Trotsky" é uma fantasia completamente fora da realidade histórica. Por exemplo, em maio de 1917, Kerensky foi representado dois meses antes da realidade como ministro-presidente do Governo Provisório. Ao mesmo tempo, ele fala de seus camaradas do Soviete de Petrogrado, cujo membro do presidium ele, aliás, foi, como marionetes de Lenin. Notável ainda é o cenário da manifestação em outubro de 1905, quando são vistos slogans, que não haviam ainda em 1905. Por exemplo, "Todo o poder para os soviétes" que foi um slogan de 1917. Na série, o slogan também está escrito em ortografia moderna, um erro primário que detona a pouca preocupação com a realidade histórica. Os autores da série são fantasticamente ignorantes em história da Rússia, e parece que eles fundamentalmente não querem saber disso, talvez, porque eles tenham tido outras tarefas, puramente ideológicas, a de induzir ao máximo na consciência popular uma teoria da conspiração pela qual a Revolução foi o resultado de conspirações e ações de forças externas. Daí, por exemplo, a aparição de um certo oficial de inteligência alemão, que já sabe em 1902 que haverá uma guerra mundial e que é necessário encontrar pessoas que colapsarão o império russo.

Por fim, assistam “Trotsky” se desejarem um entretenimento sem compromisso com os fatos, trata-se de uma fantasia que pode agradar a quem busca assistir uma produção russa com uma estética russa, tão rara neste lado de cá do mundo. Para o público russo, mais do que uma fantasia, parece tratar-se de uma tentativa deliberada de concretizar visões de um revisionismo histórico corrente no país atualmente.

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