A postura estratégica da Rússia contemporânea
Por António Luciano Fontes Ramos

Putin acompanhou a evolução degenerativa russa da década de 90 do século passado que, a traço largo, se pode descrever como num sistema político com um centro instável, no afastamento progressivo das regiões e repúblicas, numa crise económica destrutiva, e numa periferia que ansiava pela estabilidade e segurança que a Federação não podia garantir.
Um dos seus actos iniciais ainda como Presidente Interino foi a assinatura, em 10 de Janeiro de 2000, do decreto presidencial relativo ao novo Conceito Nacional de Segurança da Federação Russa. E este documento apresenta alterações profundas em relação aos anteriores, definindo as opções políticas e estratégicas da nova postura russa, que se têm mantido, com poucas variações de substância, ao longo do tempo. De que destacaremos duas alterações que parecem sintetizar esta mudança.
A “criação de um mundo multipolar”. O novo Conceito marca, antes de mais, o afastamento definitivo da “parceria estratégica e de “cooperação” com o Ocidente que guiava o Conceito de Segurança Nacional de 1997 de Yeltsin, palavras completamente omitidas no novo texto.
Considerando existirem duas tendências “mutuamente exclusivas” que dominam o sistema de relações internacionais, o novo Conceito Nacional prescreve, como linha mestra, o apoio à “criação de um mundo multipolar” como contraponto a uma estrutura de relações internacionais dominada pelos “países desenvolvidos ocidentais sob liderança Americana”. A inclusão dos países ocidentais na tendência unipolar liderada pelos EUA e a acepção de que as tendências são mutuamente exclusivas, indo a Rússia apoiar a multipolar, indicia uma postura antagónica à dos países desenvolvidos ocidentais, nomeadamente da Europa. O que parece um facto significativo.
O texto refere ainda que, face ao seu considerável potencial económico, técnico e militar, bem como à sua situação única no continente Euro-asiático a Rússia pretende desempenhar uma “função importante nos processos mundiais”. Como um dos “centros influentes do mundo multipolar”. E este desiderato tem estado presente, em termos substantivos, em todos os conceitos seguintes.
A luta pela afirmação da Rússia como grande potência num mundo multipolar, parece ter de facto constituído a sua linha central de orientação geoestratégica e tem assentado em duas formulações interligadas. A afirmação do “Eurasianismo” como conceito agregador do espaço geoestratégico em que se insere; e o estabelecimento de Alianças que organizem esse espaço e equilibram ou constituem alternativas aos outros polos.
O Eurasianismo radica no conceito de que ao longo da história, pela interação étnica, pela cultura, tradição e pelos valores comuns, a Rússia desenvolveu um “ethos” próprio, de facto unificador da sociedade. O que permite ultrapassar as fracturas e divisões entre a cerca de uma centena de grupos étnicos diversos e as divisões entre as 86 regiões que constituem a Federação. Mas tem implícito, como vários pensadores russos têm afirmado, que a sua aproximação à Europa ou à Ásia poderia destruir essa matriz fundacional. A Rússia passou a ser apresentada como um espaço geopolítico separado e localizado entre a Europa e a Ásia, ou como uma ponte entre os dois. É de resto recorrente o apelo a estes princípios nas intervenções das figuras públicas russas.
E, em consequência, pelo esforço para organizar este polo euroasiático reconfigurando o espaço da antiga URSS através de uma reaproximação económica e de defesa comum. No campo económico e após vários anos de aproximações foi constituída, em 2010, a Comunidade Económica Euroasiática, na sequência da inicial União Aduaneira, e finalmente a União Euroasiática, em 2015, entidade que assenta num quadro institucional comparável ao da União Europeia. Na área militar, o antigo Tratado de Segurança Colectiva que tinha sido criado por 5 anos, em 1992, é reformulado e dinamizado e, em 2003, o seu sucessor é apresentado como Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC), com uma estrutura civil e militar, muito semelhante à da OTAN. Estas organizações têm uma composição variável, mas três estados importantes pela sua dimensão e relevo estão em todas elas. A Rússia, a Bielorrússia e o Cazaquistão.
Porém, duas outras organizações transcendem a dimensão da formulação dum Pilar Eurasiático e projectam-se no sistema internacional e na reorganização da Ordem Mundial. A Organização de Cooperação de Shangai que, juntando a China, a Rússia e quase todas as ex-Repúblicas Soviéticas da Ásia Central (com excepção do Turquemenistão), representa cerca de 60% da massa da Eurásia, e ¼ da população do mundo. Com possível abertura à Índia, Irão, Mongólia e Paquistão, poderá representar metade da humanidade. Além do Afeganistão como observador, existem ainda, como parceiros, a Bielorrússia, a Turquia e o Sri Lanka. Esta organização, que desde o início tem um cariz exclusivo, representa, segundo o MNE Russo Lavrov, uma oportunidade única para formar um “modelo fundamentalmente novo de integração geopolítica”. Finalmente, a institucionalização dos BRIC. Se bem que reunindo países com características e interesses muito diferentes, as Cimeiras já efetuadas têm permitido manter o respetivo alinhamento em questões de interesse comum e, sobretudo, preencher um espaço relevante de afirmação autónoma. De notar que no quadro dos BRIC foram lançadas instituições paralelas ao FMI e ao Banco Mundial, ou seja, de novas estruturas de governação internacional complementares ou alternativas, às instituições de Bretton Woods que têm sido um dos esteios da governabilidade global pós II GM.
O alargamento da OTAN considerado como Ameaça. Esta é a segunda alteração de natureza estratégica substantiva do Conceito Nacional de Segurança de 2000. Enquanto no anterior se reconhecia “a ausência virtual de ameaças de agressão em larga escala contra a Rússia” o que permitia pensar numa redução da pesada estrutura de defesa, com vista a “redistribuir os recursos do estado para resolver em prioridade problemas agudos”. O Conceito de 2000 considera que o “nível e escala das ameaças militares estão a aumentar”. E sobretudo que o uso da força da OTAN, para além da sua zona de responsabilidade, pode levar “ à desestabilização da situação estratégica mundial”.
E considera como ameaças específicas, “(…) acima de tudo, o alargamento da NATO para oriente”, bem como “o enfraquecimento dos processos de integração de Comunidade de Estados Independentes”.
Em consequência, este Conceito prevê “o renascimento do potencial militar do país e a sua manutenção a um nível suficientemente elevado”. Foi em consequência alargado o quadro de uso das forças nucleares, prevendo-se o uso destas para repelir “agressões armadas” contra a Rússia. O que representa um profundíssimo afastamento dos conceitos anteriores baseados no uso de armas nucleares na “dissuasão realística”, contra invasões em “larga escala”. Foram reorganizadas substancialmente as forças convencionais, através da profissionalização progressiva dos seus efectivos, e dum plano de modernização com base num investimento de cerca de 700 Biliões de USD, até 2020, visando, no geral, transformar a estrutura massiva e pesada do passado, num sistema de forças mais ligeiras, mais flexíveis e mais móveis, talhada para emprego em conflitos locais e regionais.
A invasão da Geórgia e da Ucrânia, fora do quadro das Nações Unidas, tem levado diversos analistas a mostrarem preocupação profunda perante o que consideram ser o sentimento de liberdade de ação russa perante um ocidente considerado dividido, desgastado e expectante. Em particular a sua participação nas negociações nucleares do Irão e a intervenção na Síria materializam o regresso da Rússia ao tabuleiro mundial da paz e de guerra.
Tenente-general António Luciano Fontes Ramos. Professor Convidado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.
O artigo completo pode ser lido em: https://www.revistamilitar.pt/artigo/1212