Breve histórico do olhar da diplomacia brasileira para a Europa
As paixões hoje permeiam não apenas a agenda política interna do Brasil, mas também influenciam as relações do “gigante tropical” com o mundo, inclusive com o continente europeu. Nas últimas décadas, o diálogo de parceiros em diferentes lados do Atlântico passou de uma parceria estratégica estreita para queixas mútuas e distância.
As relações do Brasil com a Europa são em grande parte determinadas por uma história especial de independência, ao contrário de outros estados latino-americanos. No início do século XIX, sendo proclamado parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, essencialmente igual à própria metrópole - Portugal, o país escapou da luta armada pela independência. Após a mudança na forma de governo e o início do crescimento econômico, o Brasil passou a reivindicar seus direitos de dominação regional, o que se manifestava mais claramente na doutrina de política externa do final do século 19, surgida graças ao “pai da diplomacia brasileira” Barão de Rio Branco. A ideia de independência da política externa e independência dos centros tradicionais (incluindo a Europa) pode ser considerada tradicional para o maior e mais desenvolvido país da América Latina. Ela se manifestou durante o reinado de muitos grandes líderes dos séculos 20 e 21, mas de forma mais impressionante - sob o presidente Getúlio Vargas.
O principal impulso para o desenvolvimento das relações entre Brasil e Europa deu-se na década de 80 do século XX, quando a Comunidade Econômica Europeia, que ganhara força, identificou a região latino-americana como um de seus parceiros não regionais prioritários. O reforço da Espanha e de Portugal após a sua adesão à CEE em 1986 também desempenhou um papel positivo. Para desenvolver cultural e socialmente as relações com as ex-colônias, os países ibéricos buscaram formar uma comunidade ibero-americana para promover parcerias políticas e econômicas. Começando no final da década de 1980 em vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, as reformas neoliberais e a privatização em grande escala forçaram os negócios espanhóis a se expandir ativamente na região e desenvolver mercados promissores.
O Brasil, maior país da região, tornou-se de particular interesse para os europeus após o fim do regime militar em 1985, quando voltou à trajetória de desenvolvimento democrático. Naquele ano começaram as relações oficiais entre a CEE e o Brasil, e em Brasília, surgiu a representação da associação europeia. Posteriormente, foi assinado o primeiro acordo-quadro de cooperação e iniciado o processo de consultas regulares.
Se antes a liderança brasileira via a Europa mais como fonte de investimento, tecnologia e também um mercado promissor para as exportações agrícolas, o verdadeiro florescimento das relações ocorreu durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso em 1995-2002. A Europa tornou-se um aliado fundamental do Brasil, embora o país continuasse sendo uma espécie de parceiro júnior. O tema da cooperação foi ampliado para incluir os mais importantes para os problemas europeus de direitos humanos, proteção ambiental, desigualdade social e luta contra o crime. Talvez esse período tenha se tornado o auge das relações entre os dois lados, líderes europeus declararam o Brasil como seu principal parceiro na América Latina e a autoridade do presidente brasileiro no Velho Mundo era inédita. A Europa tornou-se o principal investidor da economia brasileira e o faturamento cresceu em ritmo acelerado.
A década de 2000 viu o crescimento de todas as economias em desenvolvimento, incluindo o Brasil, o que as obrigou a reconsiderar sua posição no mundo e deu-lhe motivos para conversar com os países do centro do capitalismo em pé de igualdade. Durante o período da “virada à esquerda”, os novos líderes brasileiros Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016) mudaram as prioridades da política externa do país. Em vez de focar na Europa, a cooperação Sul-Sul e a consolidação da liderança brasileira no mundo em desenvolvimento tornaram-se áreas-chave da política externa. O Brasil se equilibrou entre o domínio tradicional dos Estados Unidos e a influência da União Europeia, forjando alianças estratégicas e táticas alternativas com o mundo em desenvolvimento. A quintessência desse curso foi a entrada do Brasil no BRICS e o início de uma estreita aliança política e econômica com a China, que gradualmente destituiu primeiro os Estados Unidos e depois a UE como um parceiro comercial importante.
Enquanto isso, a ascensão do Brasil e o potencial de seu imenso mercado interno fizeram do “gigante tropical” um parceiro desejável para os europeus. O Brasil recebeu o status de "parceiro estratégico" em 2007, foi assinado um acordo de comércio preferencial. Certos países europeus estavam ansiosos para aproveitar as oportunidades de cooperação emergentes. A França, durante o governo de Sarkozy, tornou-se parceira estratégica do Brasil no complexo militar-industrial, apesar das diferenças ideológicas entre os governos.
No esforço de dialogar com a Europa em igualdade de condições, o Brasil exigiu o reconhecimento de seus interesses econômicos objetivos no âmbito do complexo processo de negociação entre o MERCOSUL e a UE, iniciado em 1995. Devido às duras abordagens de ambas as partes, as negociações decorreram em uma situação difícil, foram repetidamente interrompidas devido à relutância dos países europeus em discutir o problema dos subsídios agrícolas. O Brasil começou a perceber suas contradições não só com a UE, mas também com outros países desenvolvidos (EUA, Japão) como uma violação global dos direitos dos países em desenvolvimento, trazendo esses problemas para o nível da OMC. Não querendo mais desempenhar o papel de parceiro júnior, os líderes brasileiros encontraram uma nova plataforma para avançar suas ambições globais - o G20, reivindicando o papel de líder informal que une os países do Sul Global.
A grande crise econômica e posterior política que atingiu o “gigante tropical” após 2015 marcou outra nova era nas relações com a UE. Em um de seus discursos, o primeiro ministro das Relações Exteriores durante a presidência de Michel Temer (2016-2018), José Serra, proclamou o retorno à tradicional política externa brasileira pautada na orientação ocidental e no "realismo liberal" entre valores e interesses. Na verdade, tratou-se de uma tentativa de retomar parcialmente o sistema de relações que existia na época de Fernando Henrique Cardoso. Ao mesmo tempo, o novo governo de direita não poderia abandonar completamente as velhas abordagens de “realismo” na política externa herdadas por eles da esquerda. O BRICS conseguiu se tornar um importante instrumento para a realização dos interesses nacionais, e a China, apesar das diferenças ideológicas, tornou-se um parceiro comercial e de investimento comparável em importância à Europa.
Uma virada radical e dramática nas relações ocorreu após a chegada ao poder em 2019 do político radical de direita Jair Bolsonaro, que não escondeu durante sua campanha eleitoral que o principal parceiro de sua equipe não seriam apenas os Estados Unidos, mas especificamente a administração Donald Trump. O valor da União Europeia (enfraquecido após o Brexit, afogando-se em contradições internas, demonstrando falhas óbvias em sua política externa - por exemplo, na situação com a crise venezuelana) como parceira foi desvalorizado aos olhos do muito duro e astuto Bolsonaro, que valoriza a força acima de tudo. Bolsonaro, conhecido por seu conservadorismo, está extremamente irritado com a política liberal europeia em relação aos valores da família e aos direitos das minorias sexuais.
Bolsonaro não se interessa pela Europa no sentido de valor, como seus antecessores Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, mas de uma forma estritamente pragmática - como fonte de investimento e tecnologia, além de mercado promissor em caso de acordo entre MERCOSUL e UE. Durante sua campanha eleitoral, Bolsonaro saudou o acordo, ameaçando os sócios do MERCOSUL na falta de avanços para se retirarem da união aduaneira e concluírem um acordo com os europeus separadamente. O acordo acabou sendo assinado em junho de 2019, embora tenha sido uma conquista não do governo recém-eleito, mas de seus antecessores durante a presidência de Temer. Mas um avanço em um acordo comercial não significou de forma alguma o início de uma era de reaproximação entre as duas regiões - ao contrário. Durante a campanha eleitoral, o lado europeu acompanhou de perto as declarações do candidato de direita sobre as perspectivas de retirada do Brasil do Acordo de Paris sobre o Clima. Os especialistas europeus não criaram ilusões de que seriam capazes de estabelecer um diálogo construtivo com o novo líder. Já em dezembro de 2018, foi traçado um futuro eixo de confronto entre Emmanuel Macron e Jair Bolsonaro, depois que o líder francês prometeu não ratificar o acordo comercial caso o Brasil saísse do acordo climático.
Posteriormente, as contradições entre a liderança brasileira e os europeus (tanto com a UE quanto com os Estados individuais) só aumentaram. Os incêndios na Amazônia no verão de 2019 causaram um escândalo diplomático de alto nível entre o Brasil e a França. Macron, propondo mecanismos de controle internacional e assistência ao reflorestamento, inadvertidamente levantou a questão mais dolorosa para os militares brasileiros: ele teria usurpado a soberania brasileira sobre a Amazônia. A acuidade deste tópico é tal que a proteção do controle sobre a Amazônia é explicitada em todos documentos-chave de segurança nacional. Para as elites brasileiras, a soberania sobre a Amazônia é muito mais importante do que os problemas ambientais, portanto, Bolsonaro rejeitou categoricamente qualquer acusação de dano ao meio ambiente, chamando a Europa de "seita ecológica.
As diferenças nas abordagens para combater a pandemia do coronavírus também adicionaram lenha à fogueira. A política do dirigente brasileiro, que a princípio negou o próprio problema da COVID-19, e depois defendeu a minimização das restrições, encontrou pouco entendimento não só dentro do país, mas também entre os europeus, que professam o princípio de “a vida é mais importante do que a economia ”. A imagem de Bolsonaro na Europa acabou sendo fundamentalmente prejudicada, embora pareça que isso o preocupa cada vez menos. A recusa da França em ratificar o acordo UE-MERCOSUL em setembro de 2020, resultante da influência do lobby agrícola francês e não das queixas pessoais dos líderes, causou extrema irritação no Brasil e quebrou uma das poucas pontes que ligavam os países.
O foco da política externa brasileira está cada vez mais mudando para o triângulo Brasil-EUA-China, no qual se desenrolam as principais discussões e lutas políticas dentro do próprio país. Curiosamente, os think tanks brasileiros de maior autoridade no campo das relações internacionais (Fundação Getulio Vargas, Centro Brasileiro de Relações Internacionais, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Instituto Rio Branco e outros) geralmente não compartilham da atual estratégia de política externa do governo. No entanto, eles agora estão mais focados em analisar os rumos da política externa brasileira, norte-americana e chinesa, enquanto no passado suas visões eram direcionadas para a Europa. Já o Velho Mundo está presente no discurso de especialistas no contexto da assimetria prevalecente nas relações, o que foi claramente demonstrado pelo fracasso do acordo comercial. Estão sendo discutidas várias novas configurações de diálogo com a UE, incluindo a ênfase numa abordagem bilateral e no diálogo horizontal com a UE.
Ao apostar que Trump permaneceria no poder nos Estados Unidos Bolsonaro corre o risco de se tornar refém de sua política desequilibrada e excessivamente personalizada. O democrata Joe Biden compartilha as abordagens europeias aos problemas de preservação da Amazônia ou de combate à pandemia do coronavírus. Sua vitória obrigará o Itamarati a buscar novos pontos de apoio em sua estratégia de política externa, o que pode ajudar a devolver a Europa à lista dos principais parceiros.
Por:
Dmitry Razumovsky, Bruno Marriotto Jubran
Para o Valdai Club.