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GEOPOLÍTICA RUSSA – PODER BRANDO E NOVAS FORMAS DE GUERRA


Por Paulo Roberto de Macedo-Soares


A Rússia tem características geopolíticas muito interessantes: tem o maior território

dentre os Estados do globo e localiza-se entre a Europa e a Ásia; passou de uma monarquia semi-feudal − com a abolição da servidão apenas em 1861 − bastante atrasado tecnologicamente em relação aos seus congêneres europeus para uma potência nuclear capaz de ter colocado em órbita o primeiro satélite artificial, colocar no espaço os primeiros seres vivos e o primeiro homem, e também a primeira mulher, e construir uma estação espacial − ainda em funcionamento; superou em tempo curtíssimo problemas sociais de extrema pobreza e analfabetismo; tornou-se uma das duas superpotências do planeta durante a guerra fria; e então regrediu à condição de país emergente nos anos 1990. Apesar de ter uma das maiores capacidades militares do mundo e possuir o maior arsenal de armas de destruição em massa, ela tem uma economia muito inferior à de 40 anos atrás e esse retrocesso econômico impôs-lhe grandes problemas geopolíticos. Culturalmente bem desenvolvida, a nação russa

vivenciou historicamente a posição de subjugada e de conquistadora, de império − em sentido concreto e figurado − e de tributário de potências. Essas experiências resultaram em um Estado que há séculos tem como preocupação primordial a soberania e independência, com um povo que tem na segurança e na ordem suas principais preocupações nacionais; destarte, a Rússia trabalha continuamente na retomada da importância que outrora teve no sistema internacional.

Tanto pelas dificuldades econômicas que enfrenta quanto pelas características da

contemporaneidade, o poder brando é um dos conceitos mais importantes na formulação da política externa russa – e na de qualquer outro país que queira seriamente aumentar sua influência na arena internacional (uma vez que guerras abertas entre candidatos a potências tornaram-se fadadas ao fracasso, como mostraram as duas guerras mundiais). As mesmas circunstâncias levam os militares russos a analisar as novas formas de guerra que no ocidente incluem a chamada “guerra híbrida”, embora estudiosos russos afirmem que essa denominação seja apenas a teorização de fatores que já faziam parte das guerras desde tempos antigos.


GEOPOLÍTICA RUSSA

Três linhas de pensamento foram desenvolvidas conforme o Estado russo se

consolidava e avançava em organização interna, em força militar e em expansão territorial, como sintetiza Tsygankov & Tsygankov (2010):


 Ocidentalistas percebem o país como membro do Ocidente e postulam sua

integração com as demais nações ocidentais.

 Estatistas concebem o país como independente e forte, e enfatizam o papel do

Estado na manutenção da ordem política e social.

 Civilizacionistas focam a idéia de uma civilização russa com características

especiais e com certa missão de propagação cultural.


A partir dessas três linhas, os desenvolvimentos históricos levaram a diversas

vertentes, que de modo geral variam quanto ao entendimento da natureza da Rússia, se

ocidental, oriental ou única; quanto ao modo de encarar os demais atores políticos

internacionais, se como ameaças ou parceiros; e quanto à atitude adequada na relação com os demais países e com sua região, se uma aproximação com vizinhos e desenvolvimento de zonas de influência ou ligações estratégicas ao redor do globo.

Partindo de seu território original na Europa oriental, os russos expandiram seus

domínios desde o final do século IX sempre buscando uma posição geograficamente mais defensável, acorre que após ultrapassar a cordilheira dos Urais, a única barreira geográfica viável foi o Oceano Pacífico à leste, a cordilheira do Cáucaso ao sul entre o mar Negro e o Mar Cáspio, e os desertos da Ásia central. Isso causou o gigantismo territorial que é ao mesmo tempo um elemento de proteção – virtualmente inconquistável − e de constante atenção – uma vez que muitas regiões diferentes são estratégicas para a segurança nacional.

A atuação geopolítica russa pode ser observada em dois movimentos: um é assegurar

fronteiras, zonas de influência e Estados-tampão, como no caso da Ásia central, Cáucaso, Báltico, Ártico e Ucrânia; outro é estabelecer vínculos estratégicos globais, notadamente a influência na Europa, usando a Alemanha como chave, no oriente-médio, na Ásia, destacando-se Vietnam e Índia como contenção da China, que também é um parceiro estratégico (a política internacional é um campo onde raramente as relações e posições são simples e claras), além de América latina e África.


PODER BRANDO

No mundo contemporâneo, a força militar pura e simples geralmente não é o meio

mais eficiente de projetar poder e ganhar prestígio internacional. Para o coronel Bénévent (2017) da Escola de Guerra de França, o presidente Putin “está convencido da necessidade de desenvolver uma política de potência fundada sobre a persuasão e a sedução”, que ante a ausência de um “russian way of life” assenta-se na imagem de uma “Rússia eterna, só contra todos” ao propor um discurso alternativo à visão ocidental de mundo. Com um pragmatismo admirável, o governo russo utiliza diversas ferramentas para disseminar uma simpatia à Rússia. Estas envolvem a seleção de aliados e apoiadores entre representantes, isso exige um profundo conhecimento dos Estados visados e grande capacidade de antecipação; a utilização das empresas de comunicação RT e Sputnik News para a promoção do modelo civilizacional russo e para solapar a confiança em meios de comunicação e instituições políticas locais; o apoio da igreja ortodoxa, ao criticar a moral ocidental e apresentar o país como o defensor de valores tradicionais e dos cristãos do oriente.

Outro fator importante no desenvolvimento do poder brando russo consiste em seu

corpo diplomático, que é excelentemente formado e engaja-se ferreamente na defesa das ações do governo, logrando dividir as opiniões públicas e neutralizar parte dos protestos internacionais. Outrossim, novamente segundo Bénévent (2017), “a constância é o maior trunfo da Rússia na condução de suas relações diplomáticas. Ao adotar posições firmes e definitivas, ela assegura seus parceiros e se destaca de potências ocidentais que muito frequentemente estão expostas a desacordos e hesitações”.

A economia é um elemento fortíssimo no valimento de uma nação na sociedade

internacional. Genericamente essa não é uma área na qual a Rússia possa disputar com as outras potências mundiais, mas ela possui alguns pontos de excelência; um deles é a indústria bélica. A corporação estatal Rosoboronexport é o intermediário quase monopolista das exportações e importações de material militar e um mecanismo do Estado para orientar politicamente os negócios desse setor, fazendo convergir interesses políticos e comerciais; por isso é fundamental para estender a presença russa no mundo, aproveitando a qualidade e variedade desse material oferecida pela indústria russa. Essa agência define três regiões estratégicas, América latina, oriente-médio e norte da África, e Ásia; e dois tipos de mercados, os antigos clientes da URSS e os novos mercados. Não obstante, cada caso é analisado individualmente para o delineamento de um negócio, e diversas estratégias são utilizadas: compensação comercial (offset), arrendamento com opção de compra (leasing), atualização de material antigo (update) e produção conjunta (joint venture). Tornando ainda

mais complexa e profunda a projeção da indústria militar russa, está o expediente de criar uma sinergia entre contratos dos setores militar e energético ou de engenharia – outros campos de excelência russa – sobretudo em países ricos em recursos naturais; grosso modo, um contrato na área de energia é firmado com uma empresa russa que investe, participa de algum consórcio ou ganha alguma concessão, tendo lucro e garantindo que o cliente tenha a receita advinda dessa atividade para honrar os pagamentos das aquisições militares.

A imensa capacidade russa em termos de fornecimento de energia e a dependência que quase toda a Europa tem do gás russo mais uma ferramenta de projeção política. As ações na Crimeia em 2014 levaram ao levantamento de sanções contra a Rússia, mas o fornecimento de gás ao continente impediu que a situação escalasse; mesmo que as sanções estejam mantidas, a participação da Rússia na guerra síria em uma função que os próprios europeus não estão dispostos a ocupar auxilia a manter o equilíbrio, ainda que frágil, na Europa oriental. A construção dos gasodutos Nord Stream 1 e 2 são uma maneira de contornar, literalmente, os problemas na Ucrânia e de manter-se na disputa com a concorrência do gás norueguês.


NOVAS FORMAS DE GUERRA

O Chefe do estado maior e comandante das forças armadas da Federação Russa, gal.

Valerii Gerasimov (2013) afirmou em um artigo divulgado na imprensa russa que “o papel de meios não militares de atingir objetivos políticos e estratégicos tem crescido, e, em muitos casos, esses meios têm excedido o poder da força das armas em sua efetividade”; o ANEXO I esquematiza o entendimento dessa perspectiva. Nesse artigo ele levanta diversos questionamentos sobre a condução de conflitos diante dos avanços tecnológicos de novas armas e da evolução da própria doutrina da guerra, com o uso combinado de diversas ações assimétricas e indiretas e permite compreender ao menos parte do entendimento russo sobre esse tema. As mudanças nas características da guerra para a conquista de objetivos políticos

estão resumidas no ANEXO II.

As acusações e suspeitas de manipulação e ingerência russa em várias situações em

diversos países (campanhas de desinformação, violação de correspondência eletrônica,

interferência em processos eleitorais, ataques a sistemas e redes estrangeiras, incluindo o bloqueio dos sinais de GPS durante o último exercício militar da OTAN) convergem para um cenário no qual a Rússia aplica um grande potencial de ação cibernética para desacreditar instituições ocidentais e favorecer o avanço de movimentos populistas nesses países.

Somando-se isso aos acontecimentos no leste europeu, e no Cáucaso durante a década

passada percebe-se que a doutrina militar russa está atualizada pelos parâmetros mais

modernos. O gal. Gerasimov cita diretamente em seu artigo o teórico militar soviético Georgii Isserson: “Guerra geralmente não é declarada. Ela simplesmente começa com forças militares já desenvolvidas. Mobilização e concentração não são parte do período anterior ao início do estado de guerra como foi o caso em 1914, mas sim, desapercebida, antecede-o em muito”.

Outra citação muito instrutiva para compreender a visão estratégica do comando militar russo é a do acadêmico militar soviético Aleksandr Svetchin: “É extraordinariamente difícil prever as condições de uma guerra. Para cada guerra é necessário desenvolver uma linha especial de conduta estratégica; cada guerra é um caso particular que requer o estabelecimento de sua própria lógica especial, e não a aplicação de um modelo qualquer.”. Nas palavras do próprio comandante das forças armadas russas, “de fato, cada guerra apresenta-se como caso único, exigindo a compreensão de sua lógica particular, de sua unicidade”.


CONCLUSÃO

É razoavelmente fácil identificar as grandes preocupações geopolíticas russas:

segurança nas fronteiras e alianças estratégicas para reforçar sua posição enquanto evita lances hegemônicos dos EUA e da China. Assim muitas situações são claras, como a participação na guerra da Síria, os projetos de gasodutos no mar Báltico até a Alemanha, a construção de uma usina militar no Vietnã e a parceria com a Venezuela. A Rússia é um país muito militarizado, com um Estado muito centralizador, com o hábito do sigilo, pouca transparência e histórico de política externa agressiva, tudo isso resulta em uma postura de constante suspeição contra si por parte dos países ocidentais. Ao mesmo tempo é um país com imensa dificuldade de posicionar-se em relação ao ocidente, sem clareza se o integra ou não e em que profundidade.

Para contornar sua economia recalcitrante, que a faz ficar no limite da capacidade

financeira quando os preços do petróleo e do gás permanecem baixos, a Rússia parece ter desenvolvido um aparato não militar para conquista de objetivos políticos baseado em ações assimétricas e ações indiretas. Essas medidas são mais baratas e podem ser combinadas com sua capacidade militar tradicional – que é altíssima, mas igualmente custosa e insustentável no médio prazo sem mudanças econômicas estruturais – com grande eficiência e eficácia. A guerra cibernética e informacional é uma das chaves da modernização da doutrina militar, em um ponto que tangencia a promoção de sua imagem internacional por meio de mídias tradicionais e pela internet. O tema mais difícil para a Rússia parece ser o desenvolvimento de armas com princípios físicos diferentes dos tradicionais, por falta de capacidade de investimento, mas isso depende da estabilidade e crescimento econômico. Resta a impressão que esse é um país com admirável capacidade de desenvolvimento tecnológico e teórico, e que tem uma profunda compreensão de quais são os alicerces do poder de uma nação.






 

* Este texto não reflete necessariamente a opinião de Sputnik Consulting.


S O B R E O A U T O R

Paulo Roberto de Macedo-Soares é formado em negócios internacionais, pós-graduado em política e relações internacionais e consultor Sputnik Consulting para França e países francófonos. Eu sua coluna escreve sobre política, economia e cultura.

 

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