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Lavrov inaugura a sessão online “A Rússia e o Mundo Pós-Covid”

Ministro Serguei Lavrov inaugura a sessão online “A Rússia e o Mundo Pós-Covid” no âmbito do fórum internacional Primakov Readings, Moscovo, 10 de julho de 2020


Antes de iniciar, agradeço a oportunidade de voltar a intervir no Primakov Readings. É uma plataforma de discussão dos assuntos internacionais jovem, o que não impede que seja uma das mais importantes. É uma pena que a infecção pelo coronavírus impediu esta reunião ser presencial; mas as tecnologias contemporâneas permitem não mudar o horário planeado. Fiquei muito satisfeito com o facto de os meus colegas terem participado em sessões anteriores desta edição das Leituras. Acho que foi útil, vejo isso nas suas avaliações.

Não vou falar das consequências que o coronavírus já trouxe e vai ainda trazer para todas as áreas da nossa vida. Sentem-se na economia e nos contatos entre pessoas, começando por visitas oficiais e negociações e terminando por intercâmbios humanitários, culturais e educativos. As estimativas coincidem, especialmente no que toca à retomada da vida normal, que levará muito tempo. Ninguém sabe exatamente quanto, como ninguém sabe como será a vida normal. Todos coincidem em que algumas mudanças serão inevitáveis.

Aproveito para mencionar que o nosso serviço de política externa também foi sujeito a sérias provas. Na nossa sede e nas nossas representações regionais, nas empresas associadas, a doença fez sua manifestação, mas, graças a Deus, a escala não era muito grande e os casos não eram muito graves. Em alguns dos nossos estabelecimentos estrangeiros há pessoas que também sentiram as consequências da pandemia. Todos os nossos estabelecimentos estrangeiros sem exceção prestavam assistência aos cidadãos russos que ficaram no estrangeiro quando fecharam-se as fronteiras. Junto com outros membros do Centro Operacional, antes de tudo com o Ministério do Transporte, com a Agência Federal do Transporte Aéreo (Rosaviatsia), com o Serviço Federal de Vigilância na Área da Proteção dos Direitos do Consumidor e do Bem-Estar Humano (Rospotrebnadzor), com o Ministério do Desenvolvimento Digital, das Telecomunicações e Meios de Comunicação (Ministério das Telecomunicações), começámos por formar as listas. Este trabalho exigiu muito esforço, houve numerosas falhas (raramente conscientes e na sua maioria inconscientes) e sua correção. Simultaneamente, pagávamos “subsídios” diários às pessoas que ficaram nesta situação sem meios para sobrevivência. A maior parte deste trabalho já foi levado a cabo, porém ainda aparecem desejosos, até nos dias mais recentes. Pelos vistos, ao analisar a situação no país de permanência, as pessoas decidem por fim que é melhor voltar a casa devido às perspectivas incertas quanto ao fim desta epopeia.

Falando de outros aspectos em que a pandemia afecta o nosso trabalho, as nossas obrigações profissionais, a infecção agudizou todos os desafios e todas as ameaças existentes antes do seu surto. Como vocês sabem, há rumores a supor que os terroristas estariam a pensar em usar uma estirpe do vírus e talvez em criar estirpes novas para atingir os seus objetivos infames. Sempre estão aí as drogas, o cibercrime, o meio ambiente, o clima e, claro, os numerosos conflitos em várias regiões do mundo. Tudo isso vem sendo agravado pela atitude específica da Administração de Donald Trump e pela sua tendência a minar conscientemente todos os mecanismos de acordos com efeito jurídico de controlo dos armamentos e cooperação no palco internacional (exemplos: UNESCO, OMS, Conselho da ONU para os Direitos Humanos e muito mais).

Claro que estamos a acompanhar, a analisar tudo isso com muita atenção. Estamos sempre convencidos que somente o trabalho conjunto apoiado nos princípios da Carta Maior da ONU, no respeito às prerrogativas do Conselho de Segurança da ONU, mobilizando os grupos que funcionam com base no consenso – como o Grupo dos Vinte, mencionaria também o BRICS, a OCX, os grupos no espaço pós-soviético – é possível chegar a decisões sustentáveis e que garantirão a gestão eficiente de diversas crises, conflitos e a solução de problemas em prol dos interesses de todos os Estados precisamente com base no respeito das preocupações de cada um. Infelizmente, nem todos estão prontos para agir em conjunto nas condições da pandemia, para fazer passos coletivos e adotar abordagens coletivas, observam-se tentativas de promover interesses estreitos, de usar esta crise para continuar a “sufocar” regimes não desejáveis. Ficou completamente ignorado o apelo do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, e da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, no sentido de suspender, pelo menos para o período da pandemia, as sanções unilaterais que impedem o fornecimento de bens médicos e outros bens humanitários, de outros objetos de primeira necessidade para os respectivos países. São da mesma índole as tentativas de nomear os culpados pela propagação da infecção, feitas no auge da pandemia, quando todos devem pensar como ajudar aos médicos, aos virologistas. Vocês todos sabem bem do que estou a falar.

Como há 75 anos, quando a Vitória sobre o inimigo comum só foi possível ao unir os esforços e superar as divergências ideológicas daqueles tempos, agora também precisamos de compreender que só podemos resolver estas questões juntos. Com certeza, vamos falar do destino da OMS. Estamos a favor de resolver tudo com base nos princípios da Carta Maior da ONU, que é uma plataforma de segurança coletiva.

Agora, os nossos colegas ocidentais – e já mencionei isso muitas vezes –, ativaram as tentativas de implementar no uso diplomático, político e prático a concepção de “ordem mundial baseada em regras”. Isso não é direito internacional, é algo distinto (podemos falar disso com mais detalhe durante a discussão). É uma tentativa nada ambígua de restaurar o domínio que o Ocidente gozou por praticamente meio milénio. É uma tentativa que manifesta-se através de convocação de “grupos de interesses”, de diversas parcerias para as quais convida-se países cómodos que partilham das tentativas de abordagem unilateral para com os assuntos internacionais ou que aceitarão pressão para aderirem a semelhantes iniciativas. Nem todos recebem o convite. Aqueles que têm uma visão própria e estão prontos para defendê-la são deixados de lado. E depois, quando neste círculo estreito uma concepção é fabricada – tratando do problema das armas químicas ou tentando criar um clube de elite para nomear o culpado de violar a cibersegurança –, começarão a “vendê-lo” dissimulando tratar-se de normas universalmente aplicáveis. Estamos todos a observá-lo. São problemas muito graves.

Quero terminar a minha palavra introdutória. O nosso comum objetivo segue sendo a proteção dos interesses nacionais, a criação de condições mais favoráveis para o desenvolvimento do país. Como vocês provavelmente notaram, sugerimos ideias que unem. A mais relevante entre elas é a convocação da cimeira dos membros permanentes do CS da ONU. O trabalho é bastante intenso. Agora concentramo-nos no teor do evento, sendo ele de importância definitiva.

Todas as dificuldades que estão a manifestar-se nas relações internacionais, aumentam a importância destas discussões e da contribuição da comunidade de especialistas em geral, dos círculos académicos, políticos, para a análise da situação, para a construção de prognósticos razoáveis e realistas. Não posso senão lembrar a análise situacional que Evgueni Primakov implementou ativamente na nossa vida política externa e politológica. Temos em alto apreço os participantes e os organizadores das Leituras de Primakov ajudarem-nos a ter um quadro mais rico das ideias, das quais selecionamos algumas para serem depois comunicadas ao Presidente para definir o nosso rumo em circunstâncias concretas.

Pergunta: Há cinco anos, na Previsão Estratégica Global do Instituto da Economia Mundial e Relações Internacionais (IMEMO), sugerimos uma nova bipolaridade como um dos quatro possíveis roteiros da futura ordem mundial. Naquela altura, a hipótese apoiava-se na dinâmica relativa da potência conjunta acumulada pelas e pelos EUA. A pandemia trouxe numerosas confirmações desta hipótese. Obviamente, está a surgir uma bipolaridade nova, diferente da do século XX, assimétrica, quando a paridade estratégica é composta pela Rússia e os EUA e o equilíbrio económico, entre a China e os EUA.

O senhor acredita que o conflito entre os EUA e a China já tenha ultrapassado o ponto de não retorno? O agravamento deste confronto não é, obviamente, do interesse da Rússia. A Rússia poderá desempenhar um papel de potência equilibradora em prol da manutenção da sustentabilidade do sistema mundial, inclusive apoiando-se na sua experiência inédita de diplomacia multilateral?

Ministro Serguei Lavrov: Lembro-me do prognóstico mencionado. Sem dúvida, muito se mudou nestes cinco anos, principalmente no que diz respeito à confirmação de que o confronto, a rivalidade, a oposição, a luta pela liderança entre os EUA e a China está claramente a ganhar vulto. Antes de tratar deste processo bipolar em si, vou notar que a situação real no mundo em geral é muito mais complicada. Dado que o mundo está a tornar-se mais policêntrico do que antes. Há muitos jogadores além dos EUA e da China, sem os quais é muito difícil promover os seus interesses se uma ou outra capital optar por fazê-lo sozinha. Acho que ainda vamos falar de opções possíveis. A propósito, o Decano da Faculdade da Economia e Política Mundiais da Escola Superior da Economia (HSE), Serguei Karaganov, comentou o assunto no seu recente artigo para a revista Rossiya v Globalnoi Politike (Rússia na Política Global) editada por Fyodor Lukianov.

Claro que no nosso trabalho prático devemos levar em conta toda a diversidade e a integridade dos factores políticos, económicos, militares, históricos, ideológicos que se manifestam hoje no mundo multipolar predito por Evgueni Primakov. É através deste prisma que avaliamos as divergências americano-chinesas. As mesmas não existem no vazio, o que se confirma até pelo facto de cada uma das partes tentar obter o maior número possível de partidários da sua abordagem a respeito da OMS e de qualquer outro assunto percebido como definitivo das divergências nas abordagens de Washington e Pequim.

Os norte-americanos não podem senão ver o crescimento da potência estatal acumulada pela China como uma ameaça à sua pretensão de preservar a liderança mundial custe o que custar. Ainda em 2017, a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA mencionava a China, junto com a Rússia, entre as ameaças principais. É notável que em 2017, a ameaça que a China apresenta aos EUA foi pela primeira vez considerada maior da ameaça da Rússia.

A Rússia e a China foram diretamente acusadas de tentar desafiar a influência dos EUA, os valores e a prosperidade americana. Fica claro que os EUA estão a usar truques completamente de má-fé na sua luta. Todos veem e compreendem isso. Anuncia-se uma exigência unilateral que leva em conta exclusivamente os interesses dos EUA. Uma eventual recusa é rejeitada como inaceitável e logo são introduzidas sanções. Se propõe-se discutir, a discussão torna-se rapidamente num ultimato, terminando sempre por sanções: são guerras comerciais, tarifas e muito mais.

O facto de os norte-americanos e os chineses terem conseguido levar a cabo a primeira fase das negociações comerciais em janeiro e o que está a acontecer com este acordo é digno de notar. As autoridades dos EUA acusam Pequim não só de conquistar empregos, de saturar o mercado com seus bens sem querer comprar produtos fabricados nos EUA, de estar a construir o projeto “Um Cinturão e uma Rota”, que visa “dominar” todos os mecanismos de funcionamento da economia mundial, da cadeia de produção etc., mas em geral de ocultar as informações sobre a infecção pelo coronavírus, de ciberespionagem, da história com a Huawei (veja-se a insistência dos norte-americanos a obrigarem os seus aliados e outros a recusarem-se de qualquer interação com a Huawei e outros gigantes digitais e empresas da China, as empresas chinesas de tecnologias de ponta são retiradas dos mercados mundiais). A China é acusada de expansionismo no Mar do Sul da China, de problemas na linha de controlo real com a Índia, de violação dos direitos humanos; o Tibete, a Região Autónoma Uigur do Xinjiang, problemas de Taiwan e de Hong Kong. Tudo isso está a acontecer ao mesmo tempo. Cria-se uma forte onda, a “onda decúmana”. Espero, claro, que o bom senso acabe por triunfar e a situação não ultrapasse o ponto de não retorno mencionado pelo senhor Dinkin.

Esperamos que haja pessoas nos EUA que pensam em como agir no futuro, depois das preocupações eleitorais, para garantir a certeza para todo o mundo e a segurança para todo o mundo do sistema do dólar. O Secretário do Tesouro dos EUA já fala quase abertamente que não se deve ultrapassar um limiar depois do qual todos começarão a fugir de nós falando que o dólar já não presta porque todos abusam dele descaradamente.

Outra esperança é, claro, que a cultura política, diplomática, de política externa dos chineses sempre tenta evitar situações agudas. Mas há sinais muito preocupantes de que, apesar destes germes de esperança que devem ser cuidados, os funcionários norte-americanos e chineses têm recorrido cada vez mais a ataques pessoais, e em forma muito rígida. Isso evidencia um elevado nível de tensão de um e de outro lado. E este nível não pode senão preocupar. Espero que os nossos colegas chineses e norte-americanos ainda passem a usar métodos diplomáticos, as vias de diplomacia clássica, quando é preciso não ofender outrem publicamente, não acusá-lo de tudo, como os EUA costumam fazer, mas acalmar-se e reconhecer que está diante de uma das grandes potências e que é preciso respeitar os interesses que cada potência, não só grande, mas cada Estado possui. O mundo deve tencionar trabalhar com base na busca do equilíbrio destes interesses.

Quanto à segunda pergunta, a agudização não é do nosso interesse. Acredito que não é completamente do nosso interesse, nem do interesse da União Europeia e outros países. Falando da União Europeia, as trocas comerciais entre a China e a UE é bem equiparável à circulação de mercadorias entre a China e os EUA. Acho necessário observar ainda tendências que são pronunciadas com maior frequência na União Europeia a respeito da autonomia estratégica não só na área político-militar, na área da segurança, mas também nos domínios comercial e económico. Aliás, a União Europeia também quer começar a devolver para si a produção, tornando-se num centro de muitas cadeias comerciais e de distribuição. Neste sentido, entra em concorrência direta com os EUA. Dificilmente vai apoiá-los em tudo, na sua tentativa de dessangrar a economia chinesa, transferindo para o seu território os processos que fomentam o desenvolvimento ativo. Aqui vai haver muitos atritos, tensão, confronto de interesses.

Ao contrário de 2014, quando a União Europeia, pressionada pelos EUA, introduziu sanções antirrussas, hoje em dia, a UE está a manifestar sinais de pragmatismo são a respeito de nós. Em particular, anunciaram publicamente que iriam rever os infames “cinco princípios” de Federica Mogherini, formulados há vários anos para a aplicação nas elações com a Rússia, falam da necessidade de renovar a abordagem de maneira que respeite mais os interesses da União Europeia.

A propósito, recentemente o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, falando da UE e China, da UE e Rússia, respondendo à pergunta que sugeriu introduzir sanções contra a China por causa de Hong Kong, pelos direitos humanos, disse que as sanções não era um bom meio a implementar nas relações com a Rússia. Perguntámos se Josep Borrell realmente achava que as sanções eram um método adequado a aplicar nas relações com a Rússia? Os nossos amigos europeus irão pensar nisso. A pergunta não é fácil.

Acredito que, junto com a União Europeia, estamos interessados em cooperar sem prejudicar ninguém. Essencialmente, não estabelecemos amizades para organizar ações contra os terceiros. Cooperamos à base de pragmatismo, da vantagem mútua. Acredito que Bruxelas vá superar a miopia política dos tempos recentes. No âmbito do exame da União Europeia na vertente russa, vão prestar mais atenção à análise de vantagens reais do desenvolvimento das relações com a Rússia, com a UEE.

Não vejo nenhuma vantagem para a Rússia da guerra comercial entre Washington e Pequim. Não obteremos vantagem nem nas relações com a União Europeia, nem nas relações com a Índia, que são tradicionalmente de amizade e não são sujeitas à conjuntura, e em que não suponho nenhuma mudança: temos “parceria estratégica especialmente privilegiada” com esse país. Não vejo pretexto para que os nossos amigos indianos sacrifiquem as conquistas existentes na nossa parceria e as perspectivas que ela vai abrindo.

Pergunta: O senhor já se referiu às relações russo-norte-americanas. Claro que delas dependem a segurança internacional e a estabilidade estratégica. A situação é bastante preocupante, já que o regime de controlo de armamentos está em profunda crise. É bem possível que o último acordo-chave nesta área termine de existir dentro de meio ano. Esta situação tem muitas causas, tanto geopolíticas, quanto tecnológicas. A meu ver, é preciso constatar que a opinião pública hoje não pressiona as elites políticas para apoiarem o controlo de armamentos, como foi na época da Guerra Fria, quando, como lembramos, havia manifestações em massa. Hoje, as ameaças prioritárias para a população são a pandemia, a mudança climática, o terrorismo. O medo de guerra nuclear saiu para o plano de fundo. É possível mudar esta situação ou uma nova Crise dos Mísseis é necessária para que a população reconheça a ameaça de conflito nuclear e comece a manifestar a sua opinião?

Juntamente com colegas da nossa comunidade científica, realizamos agora muitas videoconferências com especialistas estadunidenses. O senhor disse que lá nos EUA há pessoas com bom senso. Pode-se dizer que estas conferências dão a possibilidade de elaborar toda uma série de novas propostas que podem ser usadas para nossas iniciativas. Claro que damos a conhecer ao MNE e ao Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Riabkov aquilo que acontece nessa área. Mas agora é bom pensar em algumas ações radicais da nossa parte, possivelmente em relação à cimeira do “quinteto nuclear” para criar condições que não só permitiriam prevenir a destruição do regime de controlo de armamentos, mas também começar a formar um novo sistema de segurança internacional e de estabilidade estratégica adequada para o século XXI.

Ministro Serguei Lavrov: Concordo. Os riscos nucleares têm crescido consideravelmente nos tempos recentes, a situação na área de segurança internacional e de estabilidade estratégica está a degradar. As causas são evidentes para todos. Os EUA querem de novo um domínio global, chegando à vitória no que descrevem como a rivalidade entre as grandes potências. Recusam-se do termo de estabilidade estratégica, chamando-a de rivalidade estratégica. Querem vencer. Como diz a famosa canção: “Vitória a todo custo”. Estão a desmantelar a arquitetura que tem controlado os armamentos, reservando para si a liberdade de escolher meios de pressão sobre adversários geopolíticos, inclusive por força, querendo ter a possibilidade de aplicar esses métodos em qualquer região do globo. Isso preocupa especialmente sob o pano de fundo das mudanças doutrinárias nos pressupostos das autoridades político-militares norte-americanas. Estas mudanças passam a permitir cenários de um emprego limitado de armas nucleares. É interessante acentuar que, como nos outros assuntos na área da estabilidade estratégica, voltam a acusar-nos de que é a nossa doutrina que prevê a possibilidade de uso limitado de armas nucleares, uma escalada em prol de desescalada, escalada em prol da vitória. Recentemente voltaram a comentar os nossos documentos doutrinais, afirmando existirem até partes secretas que postulam tais coisas. Isso não é assim. Já vemos toda uma série de programas práticos nos EUA realizados para reforçar e materializar estes postulados por potenciais técnico-militares. Refiro-me ao desenvolvimento de munições nucleares de pequena potência. Especialistas e funcionários norte-americanos falam e discutem isso abertamente.

Neste contexto, preocupa-nos especialmente a recusa bienal dos norte-americanos a voltar a confirmar o princípio essencial, o postulado a afirmar que uma guerra nuclear não pode ter vencedores e que por isso nunca deve ser iniciada. Desde o início do outono de 2018, está na mesa a nossa proposta, escrita no papel para confirmar aquilo que o Comissário Popular para os Assuntos Estrangeiros, Maxim Litvinov, e o Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, acordaram, trocando notas. Regularmente fazemos recordar disso. Dizem-nos que ainda estão a considerar o assunto. Claro que vamos promover o tema de inadmissibilidade da guerra nuclear e da impossibilidade de vencer nela no contexto da futura cimeira do “quinteto”. É vital que as fórmulas não sejam mais fracas em relação às que haviam sido consignadas nos documentos correspondentes entre a URSS e os EUA. O enfraquecimento destas fórmulas mostra-nos que os norte-americanos gostariam de dissimular a ausência de alternativas a este princípio.

Quanto à sua avaliação da situação na sociedade civil que não presta uma devida atenção a estas ameaças, concordo. É importante atrair mais atenção a este problema, explicar em linguagem compreensível os riscos existentes, porque pormenores técnicos nem sempre são compreensíveis, sendo importante a forma de apresentar aos cidadãos a análise do problema. Claro que é necessário não somente contar com estruturas oficiais do Estado, mas com a sociedade civil em si, com a sua parte politicamente ativa: as ONGs, os círculos académicos e de especialistas.

Apoiando esta avaliação, eu também apelaria a não sobrestimar o papel de consciencialização da população a respeito da ameaça nuclear, sendo importante agir sem ultrapassar as marcas e não passar a bola àqueles que tentam proibir todas as armas nucleares, levantando a onda no sentido oposto. O Tratado de Proibição das Armas Nucleares contradiz diretamente ao Tratado de Não Proliferação, criando confusão, problemas, e por isso estou certo que com as pessoas competentes profissionais – e temos maior número destas pessoas que os outros – acho que poderíamos encontrar um equilíbrio necessário.

As massas populares, já que delas estamos a falar, nem sempre determinam a vida real. Quando o Presidente Donald Trump preparava-se para as presidenciais, as massas populares apoiavam muitos dos planos anunciados por ele, o seu apelo a normalizar as relações russo-norte-americanas. Depois, estas pessoas acalmaram-se. Ninguém organiza revoltas a este respeito.

Claro que é importante continuar o trabalho direto com as potências nucleares, com as suas autoridades. Nós queremos que abordagens sensíveis predominem.

O senhor Ministro mencionou consultas políticas que mantém com os seus colegas e os especialistas norte-americanos. Nós saudamos isso. A contribuição, as avaliações, a informação que recebemos após tais consultas sempre são tidas em conta e determinam em grande medida a substância das nossas abordagens, inclusive as situações em que opções são apresentadas às autoridades, ajudando a comparar roteiros com as suas respectivas vantagens e desvantagens.

Os EUA, com o apoio dos ingleses e franceses, querem que a cimeira do “quinteto” não trate de nada além das tarefas de controlo dos armamentos, de desarmamento e de não proliferação. Os chineses veem nisso uma tentativa de impor, custe o que custar, a ideia de ampliar o círculo dos participantes das negociações sobre as armas nucleares. A China já explicou várias vezes e de maneira muito clara a sua postura a respeito das negociações multilaterais. Nós respeitamos essa postura. Aliás, os EUA são bons em abusar. E das nossas intervenções explicando a nossa posição e os nossos enfoques, das respetivas declarações chinesas, só tiram aquilo que querem usar no seu trabalho. Recentemente, os chineses disseram estar prontos para aderir às negociações sobre o controlo dos armamentos nucleares quando os EUA reduzirem os seus arsenais para serem adequados ao arsenal chinês. Um dia depois, o Enviado Especial do Presidente dos EUA para Controlo dos Armamentos, Marshall Billingslea, declarou que os EUA saudavam a prontidão da China de aderir às negociações multilaterais e convidavam a China para Viena. Nos finais de julho, terão lugar consultas de especialistas entre a Rússia e os EUA para dar continuação à reunião do Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Riabkov, com o Enviado Especial do Presidente dos EUA para Controlo dos Armamentos, Marshall Billingslea, tida em finais de junho, quando os norte-americanos montaram um “circo” com bandeiras chinesas. Agora os norte-americanos voltam a anunciar em público o seu convite à China para chegar a Viena, mas antes disso era bom que a Rússia se reunisse a sós com a China para explicar a Pequim o que os EUA querem dela. Acho que nem preciso de explicar que isso não é decente, nem diplomático. Nas nossas avaliações, quando dizemos partir do pressuposto de que a China determina ela própria a sua postura, respeitamos a posição explicada pela China. Vou notar que os norte-americanos não escreveram nada no papel a respeito das suas declarações sobre a necessidade de adotar um formato multilateral. Que pelo menos anotem no papel as suas considerações. Mas recusam-no categoricamente.

Nós estaremos prontos para participar em negociações multilaterais, mas, claro, cada um deve tomar decisão por si e voluntariamente. Só participação voluntária pode ser eficaz.

Todos os pormenores são ignorados. “A Rússia apoia o nosso apelo a iniciar negociações multilaterais”, assinalam. Quando acrescentamos que caso as negociações multilaterais tenham início, consideramos importante a participação do Reino Unido e da França, o Enviado Especial do Presidente dos EUA para Controlo dos Armamentos, Marshall Billingslea, respondendo a uma pergunta a respeito disso, disse sem hesitar que são as potências soberanas e portanto vão decidir elas próprias se vão participar, os EUA não vão decidir por eles. Porém vão decidir e de facto já decidem pela China.

Por isso, conhecendo a conduta dos negociadores atuais, não sou muito otimista quanto ao destino do Tratado de Redução de Armas Estratégicas, porém há uma espécie de diálogo. Serguei Riabkov e Marshall Billingslea concordaram em criar três grupos de trabalho no âmbito do processo que supervisionam. De 2 a 30 de julho, convocarão em Viena uma sessão do grupo de trabalho para assuntos do espaço, da transparência nos assuntos nucleares e de armamentos, e das doutrinas nucleares. Veremos. Nunca nos recusamos à conversa e iremos envidar esforços para que a conversa seja frutífera.

Pergunta: Hoje, um dos assuntos críticos das relações russo-norte-americanas, principalmente na área do controlo de armamentos, é o problema do prolongamento do Tratado de Redução de Armas Estratégicas. O que fará a Rússia se até fevereiro do ano que vem não houver consenso de Washington para prorrogar este acordo? Se surge tal pausa no diálogo com Washington na área de controlo de armamentos, se o Tratado não é prolongado, o que será com o sistema de controlo de armamentos e serão possíveis no futuro os formatos multilaterais que tentamos discutir?

Ministro Serguei Lavrov: Eu parto de que, pelos vistos, os EUA já tomaram a decisão de não prolongar o Tratado. A insistência com a qual é acentuada a ausência de alternativas da transferência da conversa para o formato trilateral, testemunha de que tudo já foi decidido. Além disso, propõem-se condições afirmando ser necessário incluir na conversa as novas armas russas, o que significa na verdade tentar abrir uma porta aberta. Nos contatos anteriores, dissemos aos norte-americanos que quando os complexos de mísseis Avangard e Sarmat estarem completamente instalados, vão ser objeto das restrições previstas pelo Tratado – desde que exista, claro. Quanto ao resto dos sistemas, são novos. Não cabem em nenhuma das três categorias abrangidas pelo START III, mas estamos prontos para começar a conversa no sentido de discutir os armamentos que não são clássicos do ponto de vista do START III – isso, claro, no contexto de conversões essenciais sobre todas as questões sem exceção que afectem, de qualquer modo, a estabilidade estratégica. São a área da defesa antimíssil, na qual estão a acontecer coisas que rasgam completamente e confirmam a mentirosidade das afirmações que tinham sido divulgadas, dizendo que era exclusivamente para prevenir a ameaça de ataque de mísseis por parte do Irão e da Coreia do Norte. Até ninguém tenta lembrar-se disso. Tudo se constrói do ponto de vista exclusivo de contenção da Rússia e da China. Entre outros factores ainda há as armas não nucleares de ponta, ou seja, o programa de ataque nuclear global relâmpago, os planos anunciados pelos EUA e pelos franceses sobre a colocação de armas no espaço, o que tampouco é ocultado, a situação em torno do Tratado da Interdição Completa de Ensaios Nucleares e toda uma série de outros factores. Estamos prontos para discutir a questão das novas armas, mas não para agradar a alguém satisfazendo suas iniciativas, senão para reduzir realmente a ameaça à estabilidade e segurança globais.

Com isso, é preciso olhar para todas as coisas que criam estas ameaças, forçando para criar um antídoto, como aconteceu com os nossos armamentos hipersónicos, elaborados em resposta à implementação global do sistema antimíssil dos EUA.

Falando concretamente do Tratado START III, precisamos de prolongamento na mesma medida que os norte-americanos precisam. Eles ficam a ver um jogo nos nossos apelos para prolongá-lo por cinco anos sem condições prévias. Dizem que a Rússia teria modernizado todo o arsenal nuclear, e nós ainda estamos a começar, querem restringi-nos, atar as mãos. Isso não é assim, absolutamente. Nós não precisamos do prolongamento do Tratado START III mais do que os norte-americanos. Se eles recusam-se de forma categórica, não vamos tentar convencê-los. Sabemos com toda a certeza que mesmo na ausência deste Tratado garantiremos a nossa segurança em perspectiva larga. Quanto ao que vamos fazer no caso do Tratado expirar sem qualquer ação sucessiva, acho ainda cedo falar disso, mas estamos prontos para qualquer cenário, e isso é realmente assim. Na hipótese de recusa de prolongamento, as opções podem ser diferentes, mas a tendência geral, posso assegurar, estará centrada na continuação do diálogo com os EUA sobre problemas estratégicos, sobre novas ferramentas de controlo dos armamentos no contexto que mencionei – no contexto de todos os factos que afectam a estabilidade estratégica.

Quanto às negociações multilaterais: ainda em 2010, ao assinarmos o Tratado START III, nós dissemos que a assinatura deste Tratado esgotava as possibilidades de ulteriores reduções no formato bilateral e falando de ulteriores reduções – sublinho esta palavra – será preciso levar em conta os arsenais nucleares de outras potências nucleares também, buscando outras formas de discussão. Trata-se de reduções. E quanto ao controlo, acredito que o caminho bilateral russo-norte-americano está longe de ser esgotado. Já que seria pouco sensível e irresponsável perante os nossos povos, perante os povos de todo o mundo perder o controlo e toda a transparência. E acho ser um sinal positivo existir um grupo dedicado à transparência (é um termo amplo, que abrange medidas de confiança e verificação) entre os grupos de trabalho russo-norte-americanos que vão reunir-se em Viena.

Pergunta: Os países da Eurásia veem na Rússia um sustentáculo central que pode unir a União Europeia aos países da Ásia. Como o senhor encara o papel da Rússia neste espaço?

Ministro Serguei Lavrov: Com efeito, a situação no continente eurasiático tem sido afetada por quase todos os fatores globais. Vários dos importantíssimos centros mundiais estão situados aqui: a China, a Rússia, a Índia, a União Europeia, se falamos do continente. Cada um destes jogadores tem suas razões para tencionar manter uma política externa independente dos EUA. Isso também diz respeito à União Europeia.

Os apelos à autonomia estratégica abrangem também a área do desenvolvimento em si. Sim, estamos a sentir na Eurásia ações não somente das forças que gostariam de formar e “arrumar” tais blocos de interesses, tentando introduzir notas de confronto nos processos, mas estamos a observar tendências cada vez mais centrípetas. Falo da ASEAN e da UE no Leste e no Oeste do nosso continente. No centro, há a Organização para a Cooperação de Xangai (OCX), a União Económica Eurasiática (UEE). Gostaríamos de promover neste espaço abordagens não de divisão, mas de união, aprofundando a cooperação transregional com base na igualdade, vantagem mútua e, o mais importante, na consciência de vantagens evidentes trazidas pela união de todo o continente através de estruturas integracionistas criadas no Oeste, no Leste, no centro, mas respeitando cada um destes grupos e buscando formas naturais de sua interação. É o objetivo daquilo que chamamos de Grande Parceria Eurasiática, proposta por Vladimir Putin no decurso da cimeira Rússia-ASEAN em Sochi, há uns anos. Acreditamos que este plano de ação é bem real.

Mencionaria “entre parênteses” que há aqui tendências contrárias. São promovidas principalmente pelos EUA através das chamadas Concepções Indo-Pacíficas, que visam minar o papel sistêmico central da ASEAN na região Ásia-Pacífico e tentar criar um grupo de países para restringir – e isso nem é ocultado – o desenvolvimento da China.

Eu estou inclinado a apoiar a busca de pontos de contato de todos os processos integracionistas. Sim, existe a concepção chinesa designada “Um Cinturão e uma Rota”, há um tratado entre a UEE e a China, prevendo a busca de pontos de contato, a harmonização dos projetos que serão realizados no âmbito da integração eurasiática, no âmbito do projeto chinês. Claro que em vários casos se trata de conflito de interesses económicos, mas a prontidão de apoiar-se em princípios jurídicos internacionais, em princípios de respeito mútuo e de vantagem mútua permite reconciliar estes interesses económicos através da busca de equilíbrio. É assim que construímos as nossas relações com os parceiros no âmbito das relações UEE-China, no âmbito da OCX e nas nossas relações com a ASEAN. Convidamos – e o dizíamos muitas vezes – a União Europeia para ver como poderia, para vantagem própria e de outrem, aderir à exploração do nosso espaço geopolítico, geoeconómico comum.

Pergunta: A região do Medio Oriente e Norte da África permanece intranquilo. Mais do que isso, não cessam de surgir lá novas linhas de ruptura, persevera a tensão, continuam os conflitos que conhecemos bem. Agrava-se a situação humanitária, resultado das sanções injustas do Ocidente contra certa parte da região. Quais são hoje os interesses estratégicos da Rússia nesta região? O que queremos lá hoje, levando em conta o caráter pós-covid da época em que entramos?

Ministro Serguei Lavrov: Com efeito, temos relações muito boas, talvez as melhores em toda a história das relações do nosso país em diversas vertentes, com esta região. As relações com todos: com os países árabes, apesar de todo o potencial de conflito dentro do mundo árabe, e com Israel. Partiremos da necessidade de promover boas relações com todos esses países, de tentar compreender os seus problemas e necessidades, levando-os em conta nas nossas relações não somente com um país concreto, mas nas relações com todos os países com os quais este parceiro concreto tem dificuldades.

Fui perguntado no início se a Rússia estava pronta para desempenhar um papel de balanceiro entre os EUA e a China. Se pedirem, se houver interesse, não recusaremos. Temos contatos estabelecidos com ambos os países. A experiência do nosso desenvolvimento histórico permite acreditar que temos potencial.

Se esta região ou alguma outra estiver interessada em nós como mediadores, sempre estaremos prontos para tentar ajudar, mas, claro, não vamos nos impor a ninguém. O nosso interesse aqui consiste principalmente em evitar novas crises militares, em solucionar as crises antigas e em fazer a região do Médio Oriente e do Norte da África uma zona de paz, de estabilidade. Não é o nosso interesse estratégico manter um caos controlado. É o interesse de alguns outros grandes países extrarregionais. Nós não temos este interesse. Não estamos interessados em fazer colidir diferentes Estados da região para obtermos um pretexto e uma razão para continuar a até ampliar aqui a nossa presença militar. Estamos interessados em desenvolver as relações comerciais, económicas, de investimentos, outras relações de vantagem recíproca com estes Estados. Nesse sentido, não queremos que algum outro país da região repita o destino da Líbia, cujas estruturas estatais foram destruídas e ninguém sabe como repará-las. Por isso, vamos agir ativamente a favor da vitória da abordagem que se assenta no direito internacional, para que não haja mais provetas com pó de lavar dentes que se fazem passar pelo gás VX, para não haver mais mentiras quanto à presença de armas de destruição em massa em outros países da região, como está a acontecer no caso da Síria. Começaram a mencionar armas químicas na Líbia. Todas estas invenções e o modo de serem criadas é um segredo de Polichinelo.

Queremos obter vantagem económica das nossas relações com os países da região. Para isso, antes de tudo, as nossas abordagens para com os problemas do mundo contemporâneo têm muito em comum: o direito internacional, a Carta da ONU, o diálogo intercivilizacional – o que é muito importante, levando em conta a população muçulmana da Federação da Rússia. As nossas repúblicas muçulmanas têm relações muito boas com os países do Golfo Pérsico, com os outros países do mundo árabe. Queremos apoiar e desenvolver tudo isso. Não vamos tirar vantagem do caos que continua aqui. Mas quando a situação se estabilizar, a seguridade da Federação da Rússia como sendo um parceiro estável na cooperação económica, na área da cooperação técnico-militar, na área política sempre garante para nós importantes vantagens.

Pergunta: A minha pergunta é sobre as recentes mudanças ocorridas no nosso país. A Constituição atualizada, que entrou em vigor, contém agora a seguinte norma: "Não são permitidas ações nem a incitação a ações (exceto a delimitação, demarcação, redemarcação da fronteira nacional da Federação da Rússia com Estados vizinhos) que visem a alienação de parte do território da Federação da Rússia". Esta norma é bastante compreensível. Neste contexto, a minha pergunta é: isto significa que as nossas negociações de longa data com o Japão sobre a chamada "questão territorial" se tornam agora inconstitucionais, ou seja, contrárias à nossa Lei Fundamental? Que me lembre, o conceito de "delimitação" ou "demarcação" nunca foram aplicados às ilhas Curilas. Estou errado? 

Ministro Serguei Lavrov: Não, o senhor não está errado. As nossas relações com o Japão baseiam-se numa série de acordos. A Federação da Rússia, como sucessora da União Soviética, reafirmou, em tempos, a sua fidelidade a todos os acordos celebrados pela URSS. Esta tese foi repetidamente reiterada pelo Presidente russo, Vladimir Putin, e também diz respeito à Declaração de 1956, segundo a qual nos dispomos a discutir e estamos a discutir com os nossos colegas japoneses a necessidade de concluir um tratado de paz, entendendo que isso não deve ser feito “na manhã seguinte ao último tiro", ou seja, após o fim do estado de guerra (alguns dos nossos colegas no Japão gostariam que isso fosse feito exatamente assim). A Declaração de 1956 acabou com o estado de guerra entre a URSS e o Japão, afirmando que não há mais guerra e que estabelecemos relações diplomáticas. Do que mais se precisa? Portanto, o tratado de paz em questão deve ser moderno e pleno e não deve referir-se à situação vivida há 60-70 anos, devendo refletir a situação atual em que estamos convencidos da necessidade de desenvolver relações plenas com o Japão. Este documento deve ser rico de conteúdo e abrangente e referir-se à paz, amizade, boa vizinhança, parceria, abrangendo todo o âmbito das nossas relações, inclusive a nossa cooperação económica que não se desenvolve, por enquanto, em todas as áreas. Não devemos esquecer que os nossos vizinhos japoneses mantêm em vigor as sanções contra a Federação da Rússia. Estas sanções não são tão abrangentes como as dos Estados Unidos, mas ainda se mantêm. 

Este tratado deve também abranger questões da segurança, uma vez que o Japão faz parte de uma aliança militar com os Estados Unidos, e Washington declarou, de facto, a Rússia como país inimigo. Evidentemente, os artigos de um tratado pleno deveriam também estipular a nossa visão da interação bilateral no cenário internacional onde, falando de forma simples, votamos de um modo diferente sobre questões litigiosas, bem como os nossos laços humanitários, culturais e muitas outras coisas. Propusemos princípios conceptuais deste tratado e, por enquanto, não recebemos uma resposta concreta dos nossos colegas japoneses. 

Evidentemente, na origem daquilo que deve definir a nossa relação futura está o problema dos resultados da Segunda Guerra Mundial. As personalidades oficiais japonesas disseram várias vezes que reconhecem os resultados da Segunda Guerra Mundial, menos aqueles referentes às Ilhas Curilas do Sul ou, como elas lhes chamam "territórios do Norte". Esta posição não se baseia no direito. Para atender às normas do direito, a posição do Japão deveria ter em conta o facto de o país ter ratificado a Carta das Nações Unidas que contém o Artigo 107 que afirma que tudo o que foi feito pelas potências vencedoras não é passível de discussão.

Claro que estamos cientes das declarações dos nossos vizinhos japoneses de que eles estarão prontos para concluir um tratado de paz assim que solucionares a questão territorial. Isso não é aquilo que acordámos. O que acordámos foi concentrarmo-nos na conclusão de um tratado de paz, conforme exige a Declaração de 1956. 

Pergunta: A Rússia critica os EUA por promover nas regiões do Pacífico e do Oceano Índico estruturas não inclusivas, concebidas para isolar os países inconvenientes aos EUA. Em primeiro lugar, refiro-me ao chamado Diálogo Quadrilateral de Segurança (Quad).  É óbvio que a existência de tais formatos leva à transformação da região de uma zona de cooperação em uma zona de confronto. Não estamos interessados nisso. Todavia, a ideia do Quad, com todos os seus pontos negativos, encontra eco entre os parceiros estratégicos da Rússia como a Índia, por exemplo. Discute-se a hipótese de “Quad Plus”, os EUA pretendem convidar o Vietname, outro dos nossos parceiros estratégicos. A julgar por tudo, existe a necessidade de reforçar a segurança na região. O senhor acha que, nestas circunstâncias, a Rússia pode oferecer uma alternativa a estes formatos para evitar uma situação em que dois dos nossos parceiros estratégicos tenham de dissuadir o terceiro?

Ministro Serguei Lavrov: Já abordei o tema dos conceitos indo-pacíficos e das estratégias de criação de uma região indo-pacífica "livre e aberta", como dizem os diplomatas norte-americanos, que surgiram há alguns anos. Quando uma iniciativa se autodenomina “livre e aberta”, tenho sempre a sensação de que cheira um pouco à propaganda porque como esta pode ser livre e aberta se não convida todos os países da região? 

Quando surgiu o termo "Estratégias Indo-Pacíficas", perguntámos se isso significava que não se tratava mais da região Ásia-Pacífico cujos contornos eram claros e que incluía a APEC e os mecanismos criados em torno da ASEAN (o Fórum de Segurança Regional da ASEAN, a Conferência de Ministros da Defesa da ASEAN e dos países parceiros, mecanismo muito importante, e, naturalmente, o mecanismo de Cimeiras da Ásia Oriental que, este ano, completa 10 anos). A Rússia aderiu a este mecanismo há alguns anos, juntamente com os Estados Unidos, aliás. Trata-se de mecanismos realmente abertos e inclusivos onde todos os países interessados são convidados. Quando perguntámos por que razão, em vez do termo adotado "Ásia-Pacífico" surgiram definições como "Estratégias Indo-Pacíficas", e se isto significava que o âmbito geográfico deste conceito era mais amplo do que a Região Ásia-Pacífico e que, dali em diante, todos os países costeiros ao Oceano Índico seriam convidados, eles disseram-nos que não.  Porque é que então eles utilizaram o prefixo “Indo”? E o Golfo Pérsico que fazia parte do Oceano Índico participaria nestes processos? Disseram-nos que não e que o Golfo Pérsico tinha problemas em demasia para ser convidado a participar naquelas iniciativas. 

Se olhar para as ideias apregoadas neste "quarteto", verá que estas, como eu já disse, estão relacionadas com as tentativas de conter a China, o que quase não se esconde. O nosso parceiro estratégico privilegiado, a Índia, compreende isto muito bem. A Índia, empenhada em conduzir uma política multilateral e multivetorial, está naturalmente interessada em desenvolver relações com os EUA (há quem não esteja?), o Japão e a Austrália. Estamos também interessados nisso. Todavia, a Índia não quer que o preço a pagar por esta cooperação seja o agravamento das suas relações com a China. Estes dois países tiveram incidentes muito tristes na linha de contacto, mas elogiamos o facto de os contactos entre os militares dos dois países terem sido logo estabelecidos e estarem a continuar. Também houve contactos entre políticos e diplomatas. Vemos o interesse dos lados indiano e chinês em evitar a deterioração das relações bilaterais. Portanto, antes de discutirmos seriamente as estratégias Indo-Pacíficas como futuro da nossa grande região, é necessário saber o que causou a esta mudança terminológica. Se o motivo foi agradar à Índia, porque o Oceano é "Índico", então digam isso. 

Há coisas que já se afirmaram. Mencionei uma extensa rede de instituições, mecanismos criados em torno da ASEAN. A ASEAN é um grupo de países que, no âmbito da sua cultura civilizacional, promovem atitudes unificadoras. Tudo se baseia na procura de consenso e equilíbrio de interesses e todos estiveram satisfeitos, durante décadas, com o facto de as relações se terem baseado nestes princípios. Foi nesta plataforma que foram criados o Fórum de Segurança Regional, as Conferências de Ministros da Defesa e as Cimeiras da Ásia Oriental. Até existe a expressão "ASEAN-way". Eles enfatizam constantemente que querem atuar ao estilo dos países da ASEAN. Isto significa evitar confrontos, não criar projetos que possam criar problemas para outro participante no processo. Infelizmente, as Estratégias Indo-Pacíficas, pelo menos na forma como foram concebidas, têm um objetivo diferente.

No início da nossa conversa, citei as acusações apresentadas pelos EUA à China em forma de ultimato, de maneira bastante dura. Eles querem utilizar este mecanismo a fim de pressionar e aumentar a pressão. Não vemos nada de positivo nisso. Todos os problemas devem ser resolvidos pacificamente, por meio de negociações. Repito a plataforma oferecida pelos países da ASEAN é ideal para que cada participante fale dos seus possíveis problemas com qualquer outro participante sem fazer polémicas sem fomentar a tensão. Estamos ativamente a “construir pontes” com a ASEAN (já falei sobre a UEE e a OCX). Os secretariados destas organizações já assinaram entre si os respectivos memorandos. Vamos defender o papel central e sistemicamente importante da ASEAN na região Ásia-Pacífico.

Se as estratégias Indo-Pacífico se tornarem mais compreensíveis, se virmos que evoluem no sentido de aderir aos processos liderados pela ASEAN e não visarem torpedear o seu papel e recentrar o diálogo travado nesta região no objetivo de conter a China ou qualquer outro país, elogiá-las-emos. Todavia, por enquanto, não vemos isso. 

Pergunta: Na semana passada, após os norte-americanos terem acusado o serviço de informações militares russo de pagar aos talibãs para matarem militares norte-americanos no Afeganistão, os peritos entrevistados concordaram que aquilo que está a acontecer tem causas políticas internas nos EUA. O seu subordinado, Representante Especial do Presidente russo para o Afeganistão, Zamir Kabulov, disse que, na sua opinião, uma das facções existentes nos EUA é contra a retirada das tropas norte- americanas do Afeganistão devido ao facto de agentes do serviço de informações militares dos EUA estarem muito envolvidos no tráfico de drogas. Ainda não tive a oportunidade de lhe fazer uma pergunta sobre esta situação. O que é que o senhor acha de tudo isso? 

Ministro Serguei Lavrov: Já reagimos ao alvoroço feito pelos EUA por causa das alegadas ligações do lado russo com os talibãs e acusação de que estaríamos a pagar aos talibãs para lutarem contra os norte-americanos e a oferecer um prémio pela cabeça de cada militar norte-americano. Só posso confirmar que tudo isto se baseia em especulações pouco escrupulosas. Nenhum facto concreto foi apresentado. Mais do que isso, altos funcionários da administração norte-americana, entre os quais o Secretário de Defesa, disseram não terem conhecimento de tais factos. 

Tudo isto faz parte da luta política na véspera das eleições e deixa a impressão de ter sido concebido especificamente para este fim (parece que isto é assim) para fazer a administração norte-americana passar vergonha, especialmente na vertente russa. Repito, não há factos. No entanto, nos finais dos anos 70 e durante os anos 80, houve outros factos dos quais a administração norte-americana não fazia segredo, fornecendo “stingers” aos mujahidins para lutarem contra os soldados soviéticos. 

Repito, estamos interessados em fazer com que a Rússia e os Estados Unidos tirem lições da sua experiência no martirizado Afeganistão e, juntamente com outros países que possam ajudar a pacificar a situação, sobretudo a China, o Irão e o Paquistão e os restantes países vizinhos do Afeganistão, ajudem a entabular um diálogo nacional. Estamos empenhados neste processo.

Quanto aos EUA, no âmbito deste processo político, somos a favor dos acordos que os EUA estão a promover no diálogo com os talibãs e o governo local. Estamos a ajudar, através dos nossos canais, a fazer com que estes acordos se tornem realidade. Existe um mecanismo de consulta Rússia-EUA-China, ao qual o Paquistão está a aderir. O Irão foi convidado mas ainda não atendeu ao convite devido aos problemas que tem com os EUA e à campanha anti-iraniana, desencadeada pelos EUA em todo o mundo. Este mecanismo de consultas ajuda a cooperar e a identificar áreas para o envio de um sinal a cada um dos lados. Isto obedece à lógica proposta pelo chamado formato Moscovo que integra todos os vizinhos do Afeganistão, sem exceção, os EUA, a Rússia e a China. Este formato melhor convém.

Quanto ao que foi dito sobre as drogas no Afeganistão e à eventual implicação de militares norte-americanos no tráfico de drogas. Temos recebido muitas vezes notícias, inclusive através dos meios de comunicação social, de que os opiáceos têm sido contrabandeados do Afeganistão para outros países, inclusive europeus, utilizando-se alegadamente para o efeito aviões militares da NATO. Governadores afegãos relataram várias vezes a circulação de helicópteros não identificados, embora o espaço aéreo do Afeganistão esteja sob o controlo da coligação da NATO. Recebemos outros relatos de que os opiáceos são contrabandeados sob outras formas. 

Naturalmente, não podemos verificar a 100% as informações recebidas, mas os relatos vêm com demasiada regularidade para serem ignorados. Se se trata de aeronaves de guerra (como eu já disse só poderiam ter sido aeronaves da NATO), estes voos só poderiam ter sido realizados por militares ou agentes dos serviços secretos. Estes episódios devem ser investigados, em primeiro lugar, pelos próprios EUA. Têm organismos competentes que provavelmente controlam como as leis do país são cumpridas. Em segundo lugar, as investigações devem ser realizadas no país onde os contingentes de tropas estão presentes, ou seja, no Afeganistão. Foi disso que Zamir Kabulov falou. Por falar nisso, se considerarmos os factos provados, veremos que, em quase 20 anos da presença dos EUA e de outros integrantes da coligação no Afeganistão, o fluxo de drogas com origem no Afeganistão e destino a outros países, à Europa, aos nossos vizinhos e à Rússia se multiplicou.

Vale a pena dizer a este propósito que o Inspector-Geral dos EUA para o Afeganistão, John Sopko, salientou recentemente no seu relatório que as plantações de papoilas são adjacentes às bases militares da NATO. Este também é um facto. Talvez isto não seja bom do ponto de vista da posição dos EUA para o combate ao tráfico de droga.

Chamámos a atenção para isso no Conselho de Segurança da ONU quando ouvimos relatórios sobre a atuação da coligação da NATO no Afeganistão, e, através dos canais bilaterais, exortando os nossos parceiros a fazer frente à indústria da droga. Eles afirmaram que isto não fazia parte do mandato da missão da OTAN que compreende unicamente o combate ao terrorismo. O facto de a indústria da droga financiar diretamente o terrorismo e as organizações terroristas é sobejamente conhecido. Tire conclusões. Repito, encaramos a sério este problema.

Pergunta: Algumas horas após esta sessão do “Primakov Readings”, às 10h00, hora de Nova Iorque, terá início uma reunião extraordinária da Assembleia Geral da ONU dedicada ao combate à pandemia. A reunião é convocada por iniciativa do Movimento dos Não-Alinhados (NAM). Como o senhor avalia o significado desta reunião? Quem vai representar a Rússia? O senhor não acha que a ONU se atrasou para reagir à pandemia? Como avalia o papel e o lugar do Movimento dos Não-Alinhados no contexto atual?

Ministro Serguei Lavrov: Claro que sabemos que, por iniciativa do Movimento dos Não-Alinhados (presidido este ano pelo Azerbaijão) será convocada uma sessão especial da Assembleia Geral da ONU dedicada à COVID-19. A sessão será um pouco mais tarde. Hoje, dia 10 de julho, inicia-se apenas o registo processual das regras que orientarão a convocação da sessão, pois, no contexto da infeção pelo coronavírus, todas as atividades a serem realizadas à distância devem ser acordadas em termos de aspectos organizacionais e processuais. Hoje, só isso será debatido. A data da convocação da sessão especial ainda não foi fixada.

Penso que não temos razões para qualificar a ONU como desajeitada e atrasada na resposta aos desafios da infeção pelo coronavírus. Quanto à Assembleia Geral da ONU, ela já se reuniu duas vezes, isso aconteceu há muito tempo, na fase inicial desta situação. Foram aprovadas duas resoluções sobre as tarefas da comunidade internacional na luta contra o coronavírus. Recentemente, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução sobre a COVID-19. Não pudemos fazê-lo durante muito tempo, porque os norte-americanos não quiseram mencionar o papel da Organização Mundial de Saúde neste documento. Finalmente, encontrámos palavras para assinalar este papel e aprovar por consenso este documento. 

Não devemos esquecer que, em maio último, a Assembleia Mundial da Saúde realizou uma sessão especial e teve a presença de uma delegação norte-americana, tendo aprovado uma resolução que foi apoiada pelos norte-americanos e que refletiu objetivamente o papel da OMS. Naquela mesma sessão foi acordado que, assim que a pandemia e todos os programas principais terminassem, seria feita, a nível internacional, uma análise às lições tiradas das atividades da OMS nesta vertente, sem apontar um dedo a ninguém. Trata-se de uma análise científica objetiva que envolverá profissionais independentes.

Estou de acordo com o senhor quando diz que o Movimento dos Não-Alinhados é o nosso parceiro próximo. Somos um país visitante que é regularmente convidado nesta qualidade para as cimeiras do MNA e para as reuniões ministeriais. O Movimento foi criado num contexto histórico muito diferente, no meio da “guerra fria”, quando os países em desenvolvimento fundadores do Movimento quiseram ser neutros em relação aos dois blocos militares. No entanto, após a “guerra fria”, o Movimento dos Não-Alinhados continua a ser um fator importante na política internacional. Penso que isso é correto, pois as tentativas de "construir" novos blocos (já falámos disso em parte hoje) continuam. É muito importante que a sua neutralidade, a sua não- participação e o seu empenho em promover os princípios do direito internacional permaneçam no centro das atividades do MNA. A propósito, em outubro de 2019, em Baku, houve mais uma cimeira do MNA. Estivemos lá como país convidado. Os países integrantes aprovaram importantes declarações conjuntas e reiteraram a sua posição a favor do reforço da multipolaridade no cenário internacional, do respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas. O MNA aprovou ainda declarações em apoio da Palestina e da Bolívia: naquele período estes temas estavam na ordem do dia. É do nosso interesse que o nosso estatuto no MNA nos permita trabalhar ativamente sobre questões de interesse comum.

Pergunta: Durante as negociações sobre os acordos de Minsk e a elaboração, o mais rapidamente possível, de emendas à Constituição da Ucrânia relacionadas com o estatuto especial da Região de Donbas, Dmitri Kozak fez alguns ultimatos? Em caso afirmativo, porque é que assumiu a posição de linha dura só agora que os acordos de Minsk têm cinco anos de existência?

Ministro Serguei Lavrov: Nenhuns ultimatos foram feitos. No âmbito do formato Normandia, a nível de conselheiros, assistentes dos quatro líderes, e da nossa participação no Grupo de Contacto, onde colaboramos com a OSCE para viabilizar o diálogo direto o qual Kiev é obrigado a travar com Donetsk e Lugansk, o nosso objetivo principal e conceitual é pedir aos nossos vizinhos ucranianos que reiterem a sua fidelidade total aos acordos de Minsk na forma como estes foram redigidos, assinados e aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU. Quando nos dizem que Kiev é fiel aos acordos de Minsk, mas, primeiro, é preciso tomar a fronteira, ao longo de toda a sua extensão, sob o controlo do exército e guarda de fronteira ucranianos, isso não são os acordos de Minsk. Isso é enganar propositadamente a população ucraniana. Quando os dirigentes máximos da Ucrânia afirmam que os acordos de Minsk devem ser preservados por constituírem motivo para manter as sanções contra a Rússia, queremos saber: se este é o principal interesse da Ucrânia em relação aos acordos de Minsk, então que eles nos expliquem por que razão a Ucrânia os assinou e que eles nos digam se a Ucrânia continua fiel a tudo o que neles está estipulado, e não citem a sua relação, artificial e inadequada, com a política de sanções. A maioria dos países da UE também entende que esta relação é inadequada. Esta é a nossa posição fundamental. Falei com os Ministros dos Negócios Estrangeiros de França e Alemanha, Dmitri Kozak falou com os seus colegas. Queremos que os franceses e os alemães, como participantes do "formato Normandia", também se pronunciem sobre este tema. Todos os dias ouvimos de Kiev declarações oficiais que simplesmente arruínam todos os acordos de Minsk aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU.

Ao mesmo tempo, travamos uma conversa pragmática a fim de acordar medidas concretas para fazer avançar todos os aspectos do documento de Minsk: a segurança, as questões socioeconómicas, humanitárias e políticas. Durante a recente reunião de Berlim, muito proveitosa, dos assistentes dos líderes dos países membros do “formato Normandia”, foram alcançados vários acordos sobre a próxima fase de troca de prisioneiros e o alcance de entendimentos no Grupo de Contacto sobre as questões da segurança e os textos dos despachos que devem ser emitidos pelas partes beligerantes (Kiev, Donetsk e Lugansk) e estipular detalhadamente as ações que devem ser proibidas por estes documentos. Isto foi acordado. O terceiro aspecto acordado da agenda política é a apresentação pela Ucrânia da sua visão de um documento que conterá emendas à Constituição para refletir o estatuto especial destas regiões de Donbas, em plena conformidade com o acordo de Minsk.

As partes chegaram à compreensão quanto a estes três aspectos. Esta compreensão deveria ter sido formalizada por meio de resoluções da reunião do Grupo de Contacto, há dias terminada. Em Minsk, a delegação ucraniana retratou-se de todos os três acordos alcançados em Berlim. Prestámos atenção a este facto. O Vice-Chefe do Gabinete do Presidente da Rússia, Dmitri Kozak, enviou a respectiva mensagem aos seus colegas. Não era nada de surpreender. Temos sempre defendido que os acordos de Minsk sejam cumpridos na íntegra e de acordo com a sequência de ações neles estipuladas. Não temos falta de paciência, mas a paciência ajuda quando existe uma clareza conceitual. Por enquanto, não há a clareza conceitual quanto à atitude da administração do Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, que chegou ao poder prometendo a rápida pacificação de Donbass, para com as ações que devem ser tomadas para levar à prática os acordos de Minsk.

Pergunta: O ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA John Bolton escreve nas suas memórias que o Presidente dos EUA, Donald Trump, estava descontente com as sanções impostas por causa do caso de Salisbury e da Síria. O senhor tem alguma informação sobre isso? O acordo com os EUA sobre a troca de visitas ao mais alto nível ainda se mantém? Considera-se a hipótese de participação da Rússia no formato alargado do Grupo dos Sete?

Ministro Serguei Lavrov: Não li as memórias de John Bolton, tendo, contudo, lido a descrição de alguns episódios incluídos neste livro. Claro que John Bolton tem a sua própria visão das relações russo-norte-americanas, da missão norte-americana no mundo, em geral, da forma como os EUA devem encarar a ordem mundial e o que a ordem mundial deve ser. Provavelmente, para que um livro (nos EUA quase todas as pessoas que ocuparam, durante um ano, um ano e meio ou dois, um cargo de função pública escrevem um livro), se venda bem, o seu autor deve despertar algum interesse nos leitores, os temas "quentes" servem provavelmente para isso. Deixo na consciência de John Bolton a maneira como foi apresentado o material no seu livro o facto de ter revelado na sua obra alguns detalhes picantes e sensíveis. Também deixo na sua consciência o evidente embelezamento das ações de Washington nalgumas situações. 

Nunca houve acordos sobre as trocas de visitas ao mais alto nível. Porque um acordo sobre uma visita significa uma data e uma cidade concreta onde a visita acordada deve acontecer. Mas ninguém se recusa a visitas. Não nos falta o desejo de trabalhar com os norte-americanos a todos os níveis. O Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, tem um bom contacto com o Presidente dos EUA, Donald Trump. Eu também me comunico periodicamente com o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo. Os nossos vices também mantêm um diálogo. Portanto, não vemos nenhuns obstáculos, se houver interesse do lado americano. Não queremos que as nossas relações com os Estados Unidos sejam vistas apenas como apêndice da luta eleitoral e das ações bastante duras que as partes concorrentes fazem uma contra a outra na véspera das eleições norte-americanas. 

No que diz respeito ao Grupo dos Sete, penso que já dissemos tudo sobre este assunto. Havia um G8, no qual a Rússia participou plenamente. Em 2014, o G8 não se reuniu. A iniciativa não foi nossa. Os nossos parceiros, a Europa, a América do Norte, o Japão, decidiram não participar. Esta foi a sua escolha. Num dos seus comentários, o Presidente russo, Vladimir Putin, disse que ainda teríamos o prazer de acolher o G8 na Federação da Rússia. Se os nossos colegas não querem, o amor não pode ser obrigado a acontecer. 

Quanto ao G7, a listagem dos países mencionados pelo Presidente dos EUA, Donald Trump, como potenciais convidados para a próxima cimeira nos EUA reflete provavelmente a compreensão de que o G7 sozinho já não resolve nada. No entanto, é pouco provável que a presença dos países citados altere muito a situação, porque nem todos os países foram incluídos na listagem anunciada. Estamos convencidos de que sem a China, as questões sérias da economia global e das finanças globais dificilmente serão resolvidas de forma eficaz. É óbvio que foram estas razões, ou seja, a necessidade de atrair os principais players nos mercados financeiros, económicos, de mercadorias, isto é, os principais agentes da economia mundial, que motivaram o reinício das atividades do G20 e sua elevação ao mais alto nível. Trata-se de um mecanismo inclusivo que funciona com base no consenso e nos princípios da igualdade. Acreditamos que, se falarmos do cerne dos problemas enfrentados pela economia e não da sua utilização em polémicas políticas no cenário internacional ou em outras retóricas, o G20 é, evidentemente, um formato que deve ser preservado, estimulado e ativamente utilizado.

Pergunta: A Rússia tem sempre declarado a sua disponibilidade para trabalhar com qualquer presidente que o povo norte-americano eleger. O senhor poderia comentar a eventual evolução das relações russo-norte-americanas se o ex-vice-presidente dos EUA Joe Biden vencer a eleição presidencial nos EUA? O senhor acha que as expectativas de alguns peritos de que ele possa reconsiderar algumas das decisões desfavoráveis à Rússia do Presidente Trump como, digamos, a retirada dos EUA do Tratado INF e do Tratado de Céus Abertos têm razões de ser? 

Ministro Serguei Lavrov: Não costumamos comentar campanhas eleitorais. Isso é da conta da imprensa, assim acontece em todos os países. A campanha eleitoral nos EUA desperta grande interesse em todo o mundo, o que é compreensível. No nível oficial, consideramos, e isso é correto, que a eleição do Chefe de Estado é a escolha do povo norte-americano, um assunto interno dos EUA. 

Por falar das consequências da eleição presidencial para as relações russo-norte-americanas, se considerarmos esta situação abstratamente, há comentários de alguns peritos que explicam como isso afetará também as negociações sobre a temática do desarmamento. Há quem pense, orientando-se, talvez, por alguns factos, que os democratas estão menos inclinados do que os republicanos a quebrar os acordos em matéria de estabilidade estratégica e de desarmamento acumulados ao longo das últimas décadas. Por outro lado, lembramo-nos de que, sob a administração do antigo Presidente dos EUA, Barak Obama, que era democrata, foi iniciada a maior campanha antirrussa, cujos muitos elementos, incluindo a questão das chamadas sanções, fazem agora parte de um consenso bipartidário. Não vou conjeturar, a situação é imprevisível. Repito, que seja o povo norte-americano a decidir.

O Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos da OSCE, que é responsável, entre outras coisas, pela monitorização de eleições, realizou a primeira monitorização à distância e divulgou um relatório apresentado recentemente ao Conselho Permanente da OSCE. Os autores do relatório reclamam da forma como os processos eleitorais são organizados de acordo com as leis norte-americanas. Não entrarei em detalhes, o relatório está disponível e pode ser lido. Os seus autores afirmam que, pelo menos, mais de dois milhões de cidadãos dos EUA estão privados, por várias razões, do direito de voto que devem ter por lei. De particular interesse é o "defeito congénito" da lei eleitoral dos EUA onde o processo de eleição é dividido em duas fases. Primeiro, os eleitores norte-americanos elegem delegados para o colégio eleitoral. Depois, os delegados deste colégio elegem o presidente do país. Ainda de acordo com o relatório, a distribuição dos círculos eleitorais é desigual em relação aos diferentes grupos étnicos. É uma observação da OSCE muito interessante. Falámos disso há muito tempo. Lembro-me de que, quando Condoleezza Rice enquanto Secretária de Estado dos EUA começou outra vez a criticar as nossas eleições, eu lhe disse que se ela tivesse algumas reclamações concretas a fazer, tínhamos observadores internacionais e nacionais e muitas outras coisas e que todo o processo seria analisado. Não pude deixar de recordar-lhe que, nos EUA, o candidato à presidência podia obter a maioria dos votos diretos e não ser eleito presidente, porque o presidente era eleito pelo colégio eleitoral. Isto fez lembrar aquilo que aconteceu no ano 2000, quando os votos foram recontados durante muito tempo na Florida e a recontagem foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal. Como resultado, George W. Bush tornou-se o Presidente dos EUA, e Al Gore admitiu a sua derrota. Naquela altura, Condoleezza Rice disse-me que eles sabiam que este era um problema mas este era um problema deles e que eles iriam lidar com este problema sozin