Tragédia e triunfo ao som de Tchaikovsky: a exclusão da Rússia e a politização da Olimpíada

Apesar das inúmeras restrições e dificuldades ocasionadas pela pandemia de
Covid-19, os Jogos Olímpicos de Tóquio estão finalmente sendo realizados. Uma série
de restrições e medidas inéditas foram mobilizadas para que o evento pudesse
acontecer. Dentro deste conjunto de adaptações um fato chama a atenção, não por estar
relacionado com a pandemia, mas por destoar das inúmeras bandeiras nacionais que
tremulam durante os Jogos. A delegação de atletas da Rússia foi impedida de competir
sob sua bandeira nacional e foi obrigada a adotar um símbolo “neutro” para que seus
representantes pudessem competir.
Tal decisão é cercada de polêmicas e ineditismos desde a sua origem; pela
primeira vez na história um país é impedido de ser oficialmente representado nos Jogos
Olímpicos. O que mais chama atenção neste arbítrio não tem relação com a
classificação ou desempenho de seus atletas, mas, sobretudo, com a origem deles.
A sentença de punir todos os atletas da Rússia se refere a supostas alegações da
Agência Mundial Antidoping (WADA) de que o governo russo teria auxiliado
competidores a acobertar ou manipular exames antidoping. Neste artigo proponho uma
reflexão sobre a decisão de punir a Rússia e demonstrarei seu evidente caráter político e,
sobretudo, como este tipo de interferência produz efeitos contraproducentes no
movimento olímpico internacional.
Em primeiro lugar, é preciso ponderar que todas as evidências colhidas sobre
esta denúncia vieram de um relatório contratado pela própria WADA a fim de colher
provas e punir o esporte olímpico russo. Para ficar mais claro, seria como se o
Ministério Público (órgão acusador) contratasse uma agência para coletar evidências
contra um réu e o punisse a partir disso. A tática é a seguinte: utiliza-se de uma entidade
supostamente independente para produzir os resultados que o contratante quer. É uma
atitude viciada, desde a sua origem, uma vez que não há ingenuidade capaz de supor
que aquele que está sendo financiado irá produzir algo que contradiz aquele que o paga.
Neste contexto que surgiu o relatório McLaren, com as alegações acima apontadas que
serviram de base para punir a Rússia.
O resultado deste relatório não poderia ser diferente. Todas as alegações se
baseiam em relatos e delações de dois atletas e de Grigory Rodchenkov, todos
condenados criminalmente na Rússia, justamente por posse e uso de drogas proibidas.
Neste relatório, porém, não foi colhida nenhuma prova factual de que o esquema
denunciado estivesse acontecendo. Fato, inclusive admitido pelo CAS, Corte
Internacional do Esporte. A origem parcial deste relatório e, pois, a presunção de
inocência dos envolvidos, põe em cheque qualquer decisão sustentada nos pilares da
Justiça Esportiva.
Além disso, não é possível imaginarmos que a WADA não tenha uma estreita
relação com o governo dos Estados Unidos ou descolar que tais denúncias tenham sido
elaboradas justamente em um contexto de elevação das sanções e tensões entre a Rússia
e o Ocidente. Isto expõe o caráter político de tal decisão e ainda evidencia que de nada
tem a ver com uma busca por um “esporte limpo”; é, antes disso, um boicote político a
um país específico.
Quando se observa o tratamento desigual dado pela WADA aos atletas norte-
americanos no que tange o controle antidoping, isto fica ainda mais evidente.
Documentos obtidos dos arquivos da WADA comprovaram que inúmeros atletas
medalhistas olímpicos dos EUA competiram sob efeitos de substâncias proibidas. A
famosa ginasta norte-americana, Simone Biles, por exemplo, faz uso sistemático de
Metilfenidato, substância que age no sistema nervoso central e aumenta o desempenho
físico e a capacidade de concentração. Outros exemplos são as irmãs Serena e Venus
Williams, tenistas que fizeram uso de diversas substâncias proibidas como
triancinolona, oxicodona, hidromorfona, prednisona entre outras. Este também é o caso
da nadadora norte-americana Kathleen Baker, medalhista de ouro e prata nos jogos do
Rio que faz uso de estimulantes, formoterol e prednisona. Estes são apenas alguns
exemplos dentro dos diversos atletas norte-americanos, britânicos, poloneses e outras
nacionalidades que tiveram seus resultados antidoping revelados após as Olímpiadas do
Rio em 2016.
Tudo isto é permitido pela WADA e nunca questionado pelas agências de
controle norte-americanas ou pelo Comitê Olímpico. Aliás, se não fossem esses
documentos vazados jamais saberíamos que quando conquistaram suas medalhas
olímpicas, estes atletas competiram sob efeitos de substâncias proibidas. O
consentimento secreto da WADA protege e aceita certos casos de doping quando se
trata de nações específicas, tornando impossível descolar, portanto, os obscuros
interesses políticos ou a participação de governos específicos envolvidos neste esquema.
É cristalino, portanto, que a escolha de punir a Rússia instrumentaliza o esporte
como ferramenta política e sua manutenção pode ter repercussões negativas a médio e
longo prazo a ponto de causar rupturas no movimento olímpico internacional. Ao
aceitar tal decisão, despreza-se um dos princípios fundamentais do esporte olímpico,
que se refere justamente, à não discriminação de origem, raça ou etnia dos atletas.
Proibir um competidor de ter seu símbolo nacional representado fere os pilares centrais
que regem a Carta Olímpica.
Se ao produzir tal decisão as autoridades ocidentais esperavam desmotivar os
atletas russos a competir na Olimpíada e assim remover fortes competidores dos jogos,
o efeito foi justamente o oposto. A bandeira do ROC (sigla em inglês para denominar o
Comitê Olímpico Russo) foi uma das que mais subiu ao pódio e o som do Concerto No.
1 de Tchaikovsky se tornou um dos hinos mais tocados nesta Olimpíada. Ademais, teve
outro efeito inesperado. O fato da Rússia estar competindo sob uma bandeira “neutra” e
ter como hino uma música mundialmente conhecida que evoca memórias afetivas nas
pessoas que a escutam, fez com que milhares de pessoas ao redor do mundo, cujos
países não tem tradição olímpica, sintam-se contemplados e representados por aqueles
atletas. Esta identificação é mais poderosa do que qualquer outra, pois tem a força de
transgredir fronteiras nacionais.
Dificilmente tal punição seria facilmente aceita se fosse direcionada às outras
tradicionais potências olímpicas da mesma forma que foi aceita pela Rússia. E isto não
tem nada a ver com uma admissão de culpa e sim ao próprio caráter multinacional da
Federação Russa. A ausência de símbolos nacionais nos jogos não possuí relação com o
patriotismo de seus atletas, uma vez que nacionalismo e patriotismo são noções
distintas. O nacionalismo pouco importa para atletas que já competiram sob pelo menos
três bandeiras ao longo dos últimos anos. Ainda mais quando se trata de uma delegação
tão plural quanto a russa, composta por diversas nacionalidades e etnias. O elemento
aglutinador da Federação Russa não é a nacionalidade, uma vez que lá habitam mais de
200 nacionalidades distintas, e sim uma noção que transcende o caráter nacional e se
situa numa concepção mais ampla de pertencimento a uma cultura ou território. Isto
subverte ou desestabiliza os efeitos esperados e pensados a partir de uma lógica
ocidental cujo intuito busca punir a Rússia e desestimular o orgulho patriótico de seus
compatriotas e atletas.
Transcender a lógica de demonização da Rússia é, talvez, impensável para
aqueles que a observam a partir das lentes míopes dos preconceitos e estereótipos
herdados da Guerra Fria. Enquanto não entenderem, vão continuar ouvindo o som
triunfante de Tchaikovsky.

O colunista Sputnik Boris Zabolotsky é mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Relações Internacionais Contemporâneas pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisador-membro do Núcleo de Estudos de Estratégia, Geopolítica e Integração Regional (NEEGI). Atualmente estuda as relações entre a OTAN e a Rússia no pós-Guerra Fria a partir de uma perspectiva teórica pós-estruturalista.